Ou Coisa Parecida ~ por Thiago Loriggio http://oucoisaparecida.com.br Sun, 30 Jun 2019 22:35:24 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.8.24 http://oucoisaparecida.com.br/wp-content/uploads/2018/03/cropped-pencil-152-224734-32x32.png Ou Coisa Parecida ~ por Thiago Loriggio http://oucoisaparecida.com.br 32 32 Coletânea 2084: Mundos Cyberpunks http://oucoisaparecida.com.br/coletanea-2084-mundos-cyberpunks/ http://oucoisaparecida.com.br/coletanea-2084-mundos-cyberpunks/#respond Tue, 30 Oct 2018 17:53:58 +0000 http://oucoisaparecida.com.br/?p=293 leia mais]]> E já está em pré-venda o ebook da coletânea 2084: Mundos Cyberpunks, da qual eu faço parte! Tem três contos meus, cada um com um tema e cenário bem diferentes. O livro já está na Amazon! E em breve sai a edição física…

 


 

Falando um pouco dos contos, foi um trabalho legal porque tinha que ser bem curto, e eu tinha me acostumado a escrever coisas maiores. O trabalho de edição foi árduo (em alguns tive que cortar quase 40% do primeiro rascunho!), mas fiquei bem feliz com o resultado. É difícil, mas quando se trabalha tanto num texto ele fica bem fechadinho, ágil, com poucas palavras fora do lugar.

 

Também deu pra trabalhar um pouco com o tema cyberpunk, que eu me interesso bastante, já que muito dele é uma extensão da nossa sociedade hoje e dos caminhos que a tecnologia está tomando. Por mais que os textos todos se passem em 2084, tem um deles que eu não me surpreenderia tanto se acontecesse muito antes…

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Princípios do Nada http://oucoisaparecida.com.br/principios-do-nada/ http://oucoisaparecida.com.br/principios-do-nada/#respond Wed, 04 Jul 2018 18:51:20 +0000 http://oucoisaparecida.com.br/?p=288 leia mais]]> O meu segundo livro, o Princípios do Nada, finalmente começou a ser publicado! Estou colocando ele aos poucos no Wattpad e no Sweek, três cenas por semana (eu divido o livro em capítulos grandes, que são divididos em cenas menores, me deixa). É uma história cujo título provisório já foi “livro sobre magia e magos que nunca usa as palavras magia, magos, feitiço e todas as variantes”. Esse título soa tão bom pra mim que meio que prova que eu tenho um péssimo senso de marketing. Para saber mais, dá uma olhada aqui!


Falando um pouco do livro em si, o Princípios foi o segundo livro que escrevi a sério (ou seja, que não abandonei no meio, ou terminei sem revisar, enfim).

A experiência foi bem diferente porque, diferente do Crônicas do Zelador, eu não fiquei um tempo pensando na história, bolando partes do mundo, e escrevendo pedaços no caderno antes de realmente sentar e escrever o livro de uma vez só. O Princípios eu sentei na noite de primeiro de agosto de 2014, peguei uma cena meio imaginada que eu fiquei na cabeça depois de ir numa livraria e escrevi. Mil palavras por dia, uns sete meses. Sem planejamento, desenvolvendo o mundo e os conceitos à medida que eles surgiam.

A primeira versão era uma bagunça, e precisou de uma edição pesada pra ficar legível (a primeira cena, essa da livraria, nem entrou no livro). Mas ainda gosto de como eu encaixei algumas coisas no final. Essa sensação, de estar escrevendo algo por intuição e do nada perceber que nossa na verdade isso aqui faz todo o sentido  é bizarro, sublime, inigualável. Dá vontade de nunca parar de escrever.

Escrever (e principalmente editar e revisar) esse livro foi um grande aprendizado, principalmente pra perceber as vantagens e limitações desse método maluco de escrever sem planejar as coisas.

Mas eu acho que estou satisfeito com como saiu tudo. Agora vamos ver se a minha estratégia pouco ortodoxa de publicação dá certo…

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O Homem Dos Olhos Opacos http://oucoisaparecida.com.br/o-homem-dos-olhos-opacos/ http://oucoisaparecida.com.br/o-homem-dos-olhos-opacos/#respond Sun, 13 May 2018 05:01:52 +0000 http://oucoisaparecida.com.br/?p=198 leia mais]]>

Caminhava a passos lentos pela rua. Prestava atenção no tempo, nas nuvens ralas que se arrastavam pelo céu claro. Nos pequenos pássaros que cantavam numa praça próxima. No seu próprio andar.

Os passantes notavam algo estranho em sua expressão, e ele notava a curiosidade dos mesmos. Eles viam no rosto do homem o nada. Uma expressão séria, não tão séria a ponto de ser confundida com tristeza, mas ao mesmo tempo tão séria que era quase indiferente. E era isso que a maioria das pessoas pensava: indiferença. Era só um homem pensando, fora do momento. Alheio àquilo tudo.

Alguns viam que não era bem esse o caso. Aqueles que encaravam os olhos do homem viam algo a mais… Me desculpe, não são bem essas as palavras. Viam a ausência. Seus olhos eram de um opaco estranho, indescritível. Não havia nada por trás deles. Não havia nada por trás dele.

Era só um homem indo para casa. Se fosse um mínimo diferente do que era, riria ao perceber que alguns passantes achavam que estava fora dali, perdido em pensamento. Era o completo contrário. Estava mais atento que qualquer passante ordinário. Seus olhos opacos viam tudo. Mas só viam a luz; nada mais. Não havia reflexão. As coisas eram o que eram, frias e reais.

Não havia nada por trás de nada. Era tudo simples e morto.

Quase tão simples e morto quanto seus próprios olhos opacos.

Carregava uma maleta quase vazia, balançando a cada passo, contendo papéis e outros pequenos objetos. Porém, ali, só haviam duas coisas que realmente importavam: os dois momentos do dia. Eram as únicas duas coisas que ele gostaria de levar a salvo para casa. Eram parte dele.

E então houve o inesperado. Fugindo da aglomeração, o homem inconscientemente virou uma esquina no intuito de tomar outro caminho para casa. E se deparou com um lugar familiar.

Familiar demais.

Do opaco dos olhos do homem veio um brilho escuro, e a expressão tomou seu rosto. Lembrança. Felicidade. Saudade. Dor.

Sua face voltou ao normal em uma fração de segundo. O brilho nos olhos, entretanto, continuava lá. E isso mudava tudo no homem. Era como outra pessoa, que não se podia confundir com o homem de passos lentos e expressão pétrea que habitava aquele corpo até poucos instantes. É um tanto difícil de explicar.

O seu passo aumentou. Entrou numa ruela no sentido oposto ao qual estava indo, e logo percebeu seu erro. “E veja, a emoção já me faz cometer pequenos erros”.

Havia um banco. Ele se sentou.

Abriu a maleta furiosamente, com mãos rápidas e trêmulas, e não teve dificuldade em achar um bolo de folhas em branco e um lápis bem apontado. Colocou o bolo de folhas em cima da maleta, no colo, e pôs-se a escrever. Não houve pausa, reflexão sobre as palavras que estavam por vir. Ele simplesmente as deixavou fluir.

Estranhamente nenhum passante notou a estranheza daquilo tudo. Só ignoravam o homem, que escrevia violentamente.

Escreveu por quase uma hora. Não havia descanso para seu lápis, a não ser nas duas vezes que teve que parar para apontá-lo. Não lia o que escrevia. Quando uma folha acabava, colocava-a atrás do bolo e continuava. Não escrevia nos versos. Talvez escrevesse em versos. Simplesmente escrevia. Punha tudo aquilo no papel. Aprisionava aquele pedaço de si mesmo.

E por fim terminou. Pegou todas as folhas escritas, hesitou, e rabiscou um título na primeira. Tirou um clipe do bolso da camisa e prendeu-as juntas. Fechou os olhos e suspirou.

E abriu os olhos novamente. Opacos como a pedra.

#

O apartamento não tinha cheiro algum. Não havia, também, som que o identificasse. Era somente um pequeno lar. Não haviam fotos espalhadas pelas paredes e pela mobília fosca, nem pequenos traços de personalidade ou de memórias. Era tudo prático, arrumado… Morto. Todos os objetos dispostos em lugares pensados, como numa exposição. Intocado.

O homem logo entrou no quarto e sentou-se na cadeira da escrivaninha. Colocou sua pasta em cima da mesa, do lado da lustrosa máquina de escrever, e tirou três pequenos bolos de papel da pasta. Não olhou para eles, nem leu seus títulos. Ele achava que ler o que havia acabado de escrever tornava o processo de livrar-se de tudo mais difícil.

Abriu a gaveta inferior do arquivo em baixo da mesa. Haviam diversas pastas, inúmeras pastas, todas com bolos de papel… E ele passou os olhos mortos pelas palavras em cima de cada pasta: Felicidade, Tristeza. Dor, Saudade. Indiferença. Impotência. Decepção. Raiva, Ódio. Tudo impecável, as folhas em ordem. Pensou por um instante, a expressão ainda morta, e colocou cada uma dos três bolos de folhas em pastas diferentes. Mecânico. Automático. Impensado.

Olhou no relógio, e se surpreendeu ao perceber o quão tarde era. O dia seguinte era… O dia seguinte. Precisava acordar cedo. Precisava acordar e viver. Era tudo que tinha.

Mas antes precisava ler, se lembrar. Quando, há muito tempo atrás, o homem decidira que iria viver desta forma, prometeu a si mesmo que não se esqueceria das emoções. Se, algum dia esquecesse por completo, perderia sua humanidade.

Ultimamente os seus textos andavam escassos. Lembrava-se do dia em que escrevia o dia inteiro, quase sem pausa. Cada pequena coisa despertava emoção nele. E precisava livrar-se dela.

Precisava contê-la com suas palavras. Assim a emoção estaria para sempre ali, acessível quando ele quisesse, mas sob controle. O homem nunca seria regido por suas emoções. E também não as reprimiria. Escrevia todas elas, e elas se esvaiam…

As palavras que usava não eram relacionadas ao que sentia. Não, não, era algo indireto.

Escrevia praticamente de tudo. Haviam poemas, frases soltas. Crônicas, narrativas…Mas tudo isso não importava, na realidade. Havia emoção nas palavras, quaisquer que fossem elas. E isso era tudo o que elas precisavam conter.

Depois de passar os dedos por entre as pastas, puxou algumas folhas, juntas por um grampo, e começou a ler. Puxara as folhas da pasta intitulada “Felicidade”. Eram só três folhas, mas estas estavam escritas tanto na frente como verso.

E o brilho voltou aos olhos do homem. E ele sorriu. Um sorriso autêntico, feliz. Leu vagarosamente, aproveitando todos os momentos daquilo… E ao final da terceira folha estava rindo baixinho. Pareceu uma criança, tão feliz em sua inocência. Tão cheio daquela felicidade pura, incorruptível.

Guardou a folha na pasta, novamente, ainda sorrindo… E a felicidade foi morrendo dentro de si. Encarava a gaveta aberta do arquivo com a expressão pétrea, imutável. Sob controle.

E então, só então, olhou para a gaveta de cima. Nesta, além de uma fechadura, havia um grosso cadeado de bronze. Sentiu as chaves pendendo em volta do pescoço, e houve dúvida.

Não me entenda mal, era uma dúvida puramente lógica. Não havia emoção alguma. Pensava nos números, nas reações passadas…

Naquela gaveta estavam guardadas suas emoções mais preciosas. Não eram simplesmente coisas do cotidiano; eram as emoções que tinham a maior influência sobre ele, e, por conta disso, eram as mais perigosas. Toda a vez, até então, que tentara senti-las tivera que escrever novamente só para livrar-se do vestígio daquelas emoções. Eram os grandes momentos simples da sua vida, alguns nem tão simples, todos presos eternamente por palavras.

Suas palavras eram fortes, não o leve a mal… Mas ele não tinha certeza se era. Mesmo presas por entre as grossas barras de ferro verbal, achava que o que elas tinham a lhe dizer já seriam o suficiente para lhe causar emoção. Não tinha medo disso, veja bem, só achava que poderia acontecer. Seu medo estava todo bem guardado, numa pasta escura no fundo da gaveta de baixo.

Estava pronto. Concluiu isso usando toda a sua lógica. Já haviam se passado meses desde que fracassara pela última vez. Tirou a corrente de volta do pescoço e abriu a gaveta de cima.

Estava bem menos cheia que a de baixo. Havia apenas meia dúzia de pastas, todas sem título, e alguns papéis soltos no fundo.

Se o homem sentisse emoção como qualquer um de nós, teria ficado confiante com o fato de que sua mão não tremeu quando tocou uma das folhas do fundo, e teria se orgulhado de si mesmo.

Teria se lembrado da última vez que lera aquela folha em específico, e se inundado com a lembrança quase precisa da sensação. Mas nada disso aconteceu. Apenas pegou a folha, e leu seu título:

“Ilusão”.

Eram só algumas frases soltas, três ou quatro pequenos parágrafos. Para o leitor desatento tudo aquilo certamente soaria só como uma divagação, uma tentativa pífia de poema, qualquer coisa nesse nível. O leitor um pouco mais atento perceberia o peso naquelas palavras todas, mas não conseguiria distinguir muito bem, não conseguiria ligar os pontos…

O homem sem emoção era o mais atento dos leitores. E entre a torrente de emoções que se seguiram, vieram algumas que não deveriam estar lá. Decepção, medo, angústia. Ele não estava pronto. Não conseguiria se livrar daquela sensação, fundo no peito, da mesma forma que se livrara da felicidade de antes. Subestimara as suas palavras do passado.

Guardou a folha de volta no arquivo, mas desta vez pelo menos fora capaz de guardá-la na pasta. Suas mãos tremiam de leve. Seus olhos pareciam prestes a explodir. Sua expressão continuava séria, mas… Por mais semelhante que era da mesma expressão que usava no dia-a-dia, havia um peso tão grande nela que não se podia descrever.

O homem sem emoção escreveu, uma vez, um texto sobre orgulho, por um dia ter sentido orgulho de não usar máscara alguma. De ser exatamente o que se via. Sua expressão do dia-a-dia era perturbadora como o vazio silencioso e morto que havia dentro de si. Não era feliz, não era triste. Mas era um espelho perfeito de como se sentia. De como não sentia.

Não era exceção agora. Artistas morreriam para conseguir capturar toda a tristeza daquela face em uma tela. Mas ninguém jamais veria aquilo. Jamais.

E então o homem dos olhos opacos fez o que fazia de melhor. Escreveu. Pôs os dedos na máquina lustrosa e digitou ferozmente, com os sons do aparelho rugindo pelo cômodo como uma metralhadora. Não seria tão forte quanto a folha solitária que lera, mas conteria os resquícios daquela emoção. Precisava conter.

O que seria de si se não contivessem? Não conseguiria viver assim. Não com aquilo no peito. Não consigo mesmo.

Emoção já reinara sua vida, e os textos que falam sobre as memórias desse tempo não são todos agradáveis. Não queria voltar a ser como era. Precisava escrever. O homem não via isso como fugir, não. Era mais nobre. As emoções ficavam lá, e ele as lia. As sentia. Mais intensamente do que qualquer memória poderia ser. Suas palavras eram precisas.

Todas emoções que tivera por um longo tempo. Todas presas no tempo, imaculadas.

#

Os olhos do homem sem emoção se abriram com o som do despertador. Havia brilho neles, diferente de todos os brilhos que haviam surgido na véspera.

É claro que ele se lembrou dos três textos que escreveu. Lembrou das palavras de forma quase precisa, naquele momento inconsciente do acordar.Mas não sentiu emoção alguma ao fazê-lo.

Claro que se lembrou das palavras duras e carregadas da mais autêntica emoção que lera no dia anterior, e das várias páginas que escrevera para conter os sentimentos que surgiram com a leitura. Lembrou-se de como aquilo havia o dominado, e como conseguira, com muito esforço, tirar aquilo de si. Mas isso, também, não o fez sentir nada.

O que trouxe o brilho aos seus olhos era algo diferente, a única coisa que seu plano perfeito de vida não conseguia controlar. A expressão máxima do poder da sua mente agindo sobre ele.

Alguns segundos depois ele se levantaria, e provavelmente não escreveria. Mas por ora estava tomado por estranhas emoções, estranhas e incontroláveis.

Porque você vê, o homem sem emoção sonhava. E nos sonhos não há como controlar a própria mente, nem o que ela vê e sente.


Nossa. Esse texto é velho. Tive que fazer um esforço pra não reeditar todo ele, tirar os advérbios, trocar as frases, deixar mais concreto, mais direto, mas incisivo… É engraçado como o nosso senso do que é bom vai se alterando com o tempo. Engraçado principalmente por escrita ser, essencialmente, algo subjetivo. Fica difícil manter uma opinião fixa sobre o que é bom e o que é ruim, e é muito fácil se perder em espirais de “meu deus será que eu só piorei, será que nessa época que eu realmente sabia o que eu tava fazendo”… Acho que essa é uma das horas que o escritor tem que ter um pouco de convicção na intuição dele. E a minha intuição diz que esse texto aí em cima tem tanto a melhorar…

Mas ainda é um texto importante pra mim. Junto com o Estacionamento, é um dos primeiros textos que escrevi “sem precisar”. E, sobre a qualidade dele, acho é válida uma citação do Luís Fernando Veríssimo, de seu livro “Os Espiões”:

O Dubin dizia que a má literatura é a literatura em estado puro, intocada por distrações como estilo, invenção, graça ou significado, reduzida apenas ao ímpeto de escrever, à magnífica compulsão.

Um brinde à má literatura, eu suponho.

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Sonhei com Você http://oucoisaparecida.com.br/sonhei-com-voce/ http://oucoisaparecida.com.br/sonhei-com-voce/#respond Sat, 12 May 2018 03:30:28 +0000 http://oucoisaparecida.com.br/?p=155 leia mais]]>

O meu conto “Sonhei com Você” já pode ser lido no Wattpad ou no Sweek! Eu postei ela lá há algum tempo, mais pra ir me acostumando com as plataformas (onde postarei coisas grandes em breve!), e só agora achei que seria legal colocar por aqui. Abre lá! Se você usa alguma dessas plataformas, aproveita pra me seguir!


Sonhei com Você é uma história que eu escrevi há um tempo considerável, motivado em escrever algo com o dia dos namorados. Acho que falhei um pouco. É uma história meio de amor, meio de abuso, meio rápida, meio terrível. Aqui eu iria completar com “inteiramente boa”, mas não tô com essa bola toda não. É um dos casos interessantes onde comecei escrevendo uma coisa, e no meio percebi que estava escrevendo algo totalmente diferente. De uma forma ou outra, eu ainda gosto bastante dessa história, talvez por ser uma das primeiras vezes que escrevi o que eu tinha em mente, por mais horrível que fosse.

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Nomes (Princípios do Nada) http://oucoisaparecida.com.br/nomes-pdn/ http://oucoisaparecida.com.br/nomes-pdn/#respond Mon, 19 Mar 2018 18:01:18 +0000 http://oucoisaparecida.com.br/?p=122 leia mais]]>

Quando o professor de história começou com seu papo de sempre, ela deixou a sala, o usual medo de não conseguir se segurar. Sentou-se no banheiro por uns minutos, lendo o pequeno livro que Tina dera a ela (como sentia falta dela), suspirando e pensando em algo sagaz para escrever na terrivelmente chata e lisa parede do box. As garotas daquela escola eram comportadas demais para o gosto dela. Dóceis demais. Aquelas duas do grupinho até que pareciam legais, mas no final acabariam sendo duas chatas que nem o resto. Alesia sabia. Deu algumas voltas na frente do espelho, arrumou o lápis de olho e saltou de alívio quando a sineta anunciou a chegada do recreio.

Recreio. Sentia-se de novo com oito anos. Naquela cidade ninguém chamava de intervalo, a denominação correta e crescida para a pausa entre aulas, mas quando ela reclamara o máximo que alguém lhe dissera foi “você liga demais pra isso”. Art, o alto, que falou. Ela sentiu ele se arrependendo da franqueza um segundo depois, mas não se aproveitou disso. Desviou os olhos e fechou a cara, como era seu costume naqueles dias. Se o universo quisesse fechar a cara para ela, ela também fecharia a cara a ele. Era o mais justo.

Saiu do banheiro logo quando as primeiras meninas entraram, comentando alguma coisa sobre garotos que ela não conhecia. Uma garota alta e bonita, cabelo negro escuro, parecia tentar convencer outra, menor, de óculos, ruiva como o pôr do sol (essa era boa; Alesia fez uma nota de colocá-la em seus próximos versos), a falar com um tal garoto de óculos. Três garotas falavam de Von, aparentemente, uma delas terrivelmente enfática em chamá-lo de babaca. Alesia saiu tentada a concordar. Era o tipo que, depois de um tempo, se mostraria um babaca. O cabelo escuro, o meio sorriso e aquela jaqueta velha que ele insistia em usar sempre que saíam da aula não enganavam ela. Devia ser tão egoísta e canalha como todos os adolescentes idiotas que circundavam a escola.

O grupinho costumava se encontrar no quarto andar, na sacada que poucas pessoas frequentavam. A parte de baixo era muito movimentada, diziam eles, e só iam para lá quando precisavam conversar com alguém específico ou pôr em prática um de seus incrivelmente mal planejados “esquemas por uma vida mais interessante”, como chamava o esquisito, Seh. Alesia duvidava da maioria dos contos de sucesso dos tais planos, mas tinha que admitir que as histórias eram boas. O pensamento era maldoso demais até para ela, mesmo naquela época, mas queria ver um desses planos em ação, só para vê-lo falhar. Sentia um misto de vergonha e excitação quando pensava nisso.

Subiu as escadas em espiral, olhos altos e orgulhosos, cara ainda levemente fechada, fazendo os olhos dos garotos tontos do oitavo ano irem ao chão. Passou pela lanchonete de terceiro andar, lembrando-se do incrível relato de quando o grupo conseguiu que a mulher do lanche mudasse o cardápio de salsicha para palitos de frango, depois de convencê-la que a maior parte dos alunos era judeu. Alesia não acreditou de início, mas enquanto passava ouviu a mesma mulher pedindo sugestões de comida kosher para um garoto especialmente narigudo.
O sol batia forte e terrivelmente entediante, esquentando as mesas de pedra até o ponto em que elas pareciam soltar fumaça. Em uma ou duas horas quem sabe realmente soltassem. Percebeu que não tinha visto muitos do grupo na sala. Era o primeiro dia depois das férias de inverno, afinal. Isso explicava muito de seu mau-humor. Não foram férias fáceis.

A sacada do quarto andar era um grande pátio quadrado, protegido por corrimões altos e cercados que subiam até dois metros de altura, com algumas mesas de pedra. Antigamente, contaram a ela, o lugar ficava exposto ao sol, e por isso era muito pouco popular. O pátio de baixo era maior, tinha uma lanchonete mais próxima e sempre fora coberto, além de ser amplo o suficiente para permitir um bom jogo de pique-esconde. No começo do ano, logo antes de Alesia ir para aquela cidade maldita, haviam instalado um grande toldo que cobria metade do pátio de cima, mas nenhum aluno pareceu perceber direito. Só o grupinho notou de imediato, e fez daquela sua base de operações. Naquele dia, entretanto, Alesia não viu ninguém depois de subir. Demorou um segundo para seus olhos se acostumarem com a luminosidade.

Encolhido no canto, uma perna esticada e a outra dobrada, Alesia viu um Von encolhido[Encolhido encolhido]. Apoiava a cabeça no punho e tinha os olhos fixos no chão, meditativo. Ele não deu sinal de tê-la visto, ou de dar a mínima, enquanto a garota caminhava e sentava-se ao seu lado. Você finge tão mal.

— Onde tão os outros? — disse Alesia, mordendo a maçã que deixara no bolso quando foi ao banheiro.

— Cella e Lena tão lá em baixo, comprando lanche. A Cella ainda tá meio irritada com o esquema da salsicha do semestre passado, ela realmente gostava da salsicha da lanchonete de cima. — Von sorriu, os olhos ainda fixos no azulejo. — Então acho que elas vão demorar. O Seh fala que no início do semestre rola mais procura por lanches, já que ninguém enjoou ainda. Todo mundo pareceu estar indo lá pra baixo.

— E os meninos? – Alie sentia-se meio idiota por se referir a eles assim, mas era essa a gíria da cidade. Era aprender ou ser sacaneada pelo resto da vida, e, num esforço mínimo para manter sua sanidade, cedeu.

— O Trevor ainda tá viajando com os pais. Só volta quarta. O Seh disse que ia ver as caras novas, então ele saiu por aí sozinho, que nem ele sempre faz. O Art acordou doente.

Alesia vestiu seu melhor sorriso zombeteiro.

— Como você sabe? Ligou pra ele no intervalo?

— É. — Von lutou contra o rubor, mas ele veio mesmo assim. Continuou com os olhos fixos no azulejo, orgulhoso. Alesia sentiu-se por um momento vitoriosa, mas não demorou a perceber que estava só arranjando um jeito muito idiota de se achar melhor que ele. Quase pediu desculpas, mas não era uma manhã fácil de engolir o orgulho. Se preocupar tanto com um amigo era até meio nobre. Ela não queria admitir, mas admirava o quão unido era o grupo. Era ainda mais difícil admitir que queria fazer parte dele.

— A Helena e a Marcella não gostam das coisinhas de frango que a mulher da cantina de cima faz? Eu acho elas bem boas…

— Quem?

Alie revirou os olhos.

— A Lena e a Cella. Caras, o que vocês têm com esses apelidos?

— A Lena é tão pequenininha, é difícil chamar ela de um nome grande, imponente como Helena. Ainda mais quando você conhece a menina desde que ela tinha tipo um metro e trinta de altura. Semana passada. — Ele riu baixinho, mas depois forçou-se a ficar sério. — Saco, preciso parar com isso. A Cella tava falando sobre como aquele fulano da sala do lado tava falando pro cara do xadrez que ela podia ser mais alta, e por isso…

— Olha, de novo — Alesia interrompeu. Não queria ouvir sobre meios romances e sabe-se lá o que. — A Marcella é alta, aposto meia maçã que ela inclusive já foi mais alta que você.

Von fechou a cara de leve, mas depois abriu um sorriso vitorioso.

— Foi. Não mais.

— Mas e aí? Qual a desculpa pra chamar ela de Cella?

Quando Alesia viu o grupo pela primeira vez, em um de seus momentos isolados no pátio, achou que Cella era aquele tipo de garota manipuladora, linda por fora, graciosa em seus sorrisos, terrível em pensamentos. Já vira aquilo antes. Um grupo de amigos comandado por uma só mente feminina, usando seus artifícios de sedução para conseguir o que quisesse. Mas ou Marcella era a melhor manipuladora que ela já conhecera, ou era uma menina extremamente doce. Mas não daquele jeito doce-irritante que ela conhecia, de um jeito genuíno e não exagerado, talvez até contido. Talvez Alesia gostasse um pouco dela. Um pouco.

— Ela não gosta muito do nome. Ou não gostava, uns anos atrás, e o apelido pegou. Acho que ela não acha muito feminino, não sei. Eu pessoalmente acho que Cella encaixa melhor.

— Claro. E o Art?

— Você já tentou ensinar o nome dele pra molecada de sete anos de idade? Não dá. Aí saiu Art, e ficou.

Alesia arregalou os olhos levemente.

— Eu não sei o seu nome.

— Von Wolfsberg. Austríaco, acho. Uns parentes meus aparentemente vieram pra cá depois da guerra, aí se estabeleceram, e hoje dizem que eu nem tenho traços, mas…

— Não cara — disse Alesia, terminando a maçã e arremessando os restos no lixo, errando miseravelmente. — Seu primeiro nome. Por que te chamam de Von?

Von pela primeira vez tirou os olhos do azulejo e encarou Alesia. Tinha os olhos ainda tensos com o pensamento, mas um tanto leves, talvez até serenos. Pensava tão profundamente que não percebia o olhar, ela soube. Normalmente ele não manteria contato visual direto com ela daquela forma, com aquela intensidade, por tanto tempo. Sentiu-se terrivelmente irritada quando teve que recuar primeiro.

— Ok, Alesia. Você talvez entenda.

— Entenda o que?

— Eu e o Seh temos uma teoria idiota.

— Bom, me conta e eu posso decidir se é mesmo idiota. — ela disse, sentindo um sorriso tímido sair dos lábios. Gostava daquele tipo de papo. Fazia-a sair de sua cabeça. Von sorriu abertamente antes de começar.

— Achamos que nomes são tipo dicas. Dicas de quem é importante.

— Como assim?

— Assim, as pessoas memoráveis têm nomes memoráveis. Entende? Tipo o Trevor, que você nem falou. O nome dele é marcante, apesar de ele se sentir meio idiota por ter um nome tão claramente estrangeiro. Mas por aqui é diferente. O Art mesmo nem se fala. Ele tem um nome totalmente único.

— Isso é bem idiota — disse Alesia, mas riu. — E quem não tem um nome marcante, tipo a Helena?

— Aí que tá a beleza. Se você não nasceu com um nome realmente legal, se você é um João da Silva, bom, você sempre pode sair dessa. Você pode arranjar um apelido legal, e virar tão memorável quanto qualquer um. A teoria não limita você ao nome que seus pais te deram. Se você quer ser alguém, crie um nome para si.

— Sei, entendi — ela disse rindo. — Tá, e aí? Por isso te chamam de Von? — Ela pensou um pouco. — Ok, é um nome legal.

— Não é? — O jovem encheu o peito. — É simples, imponente, austero, um toque de mistério estrangeiro, um som gutural…

— Você passou bastante tempo pensando nisso, né?

— Foi mais o Seh, uns anos atrás. Ele é bom nisso.

— Tá, mas sério, qual seu primeiro nome?

— É um nome comum. Um nome besta.

— Ah, qual é. Você sabe que eu posso só prestar atenção em quem levanta a mão na chamada e descobrir.

Von parou um segundo e pensou.

— Não hoje. A professora de matemática e a de português fazem chamada só por sobrenome. — Ele sorriu, triunfante.

— Uau, vou ter que esperar até amanhã? — ela disse, transformando os olhos numa linha de incredulidade. — Qual é, me conta, não muda nada. — ela disse, balançando-o pelo braço. Sentiu a reação nele imediatamente. Era assim que se lidava com garotos, não? Era fácil.

— Tá bom. Não ri.

— Não vou, é só um nome, e você já disse que era simples.

— Ok… — Ele inspirou profundamente. — Luís.

Alesia gargalhou pelo próximo minuto inteiro. Foi só expectativa, ela disse, mas isso não pareceu convencer o cada vez mais furioso Von. Depois de alguns minutos Seh apareceu, terrivelmente confuso, e depois Cella e Lena, e todos riram juntos. Von desistiu no final e juntou-se a eles. Depois, conversaram sobre alguma bobagem qualquer, e Seh teorizou que o novo garoto da outra sala era um psicopata.

Enquanto voltaram para a sala, nas organizadas filas que se formavam nos corredores, Alesia viu-se mais uma vez ao lado de Von, o barulho das dúzias de alunos dando privacidade às palavras deles.

— Von é realmente um nome bem único — ela disse.

— É. Mas eu conheço uns doze Luíses. E mais quinze Luisas. — Ele suspirou. — Essa menina loira daqui da frente chama Luisa. O diretor chama Luís. Eu posso continuar por algum tempo.

— Mas não precisa — ela sorriu —, já que não tem outro Von.

— Da mesma forma que só tem uma Alesia.

— Mentira, eu já conheci outra — ela disse, de bom humor demais para se irritar com o rubor que lhe subiu.

— Mas eu não.

— Mas eu já, e eu que conto!

— Ok, então você precisa de um apelido maneiro.

— Só por favor que não seja Alie.

Von sorriu seu sorriso sarcástico.

— Então Alie será — disse Von, fugindo do olhar fulminante com uma risada.


Abro a sessão de Extras da Edição de Colecionador com uma cena que foi escrita e não coube no livro, mas que eu ainda gosto (kill your darlings, como os gringos chamam). Nomes é quase como um pré-prólogo ao Princípios do Nada, um desses pedaços que surgem durante a escrita e acabam mais ajudando o autor a entender o que raios ele está escrevendo do que adicionam à história. Não tem nada a ver com o plot principal da história, mas ainda é um pedaço da vida desses personagens que acho que vale a pena ser lido.

Mas calma lá, diz o leitor astuto. Que livro é esse? Princípios do quem?

Pois é, o primeiro Extra é de um livro que nem saiu ainda… Um tanto excêntrico da minha parte? Talvez. Uma mostra da impaciência que me assola sobre começar a lançar esse livro? Certamente.

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O Meteoro de Rojanski http://oucoisaparecida.com.br/rojanski/ http://oucoisaparecida.com.br/rojanski/#respond Sun, 30 Jul 2017 19:40:57 +0000 http://oucoisaparecida.com.br/?p=117 leia mais]]>

O meu conto, O Meteoro de Rojanski, foi publicado na revista Trasgo! É um conto de FC hard, e, pra variar, eu não sei vender ele muito bem sem estragar tudo pro leitor. É legal, confia em mim. Se você gosta de Asimov creio que você vai gostar.

O conto pode ser lido gratuitamentente aqui, mas você também pode baixar resto da revista (que, por sinal, tem vários contos ótimos) aqui. Dá até pra escolher baixar em .mobi, para ler no kindle! Tem, também, uma entrevista comigo! Dá uma olhada!


Falando um pouco do conto em si, foi a primeira vez que escrevi uma história com esse tamanho específico, perto de oito mil palavras (dá entre 10 e 20 páginas, algo assim). Foi um desafio legal, eu usualmente faço coisas maiores, e tive que cortar boa parte do primeiro rascunho pra caber nesse formato.

A ideia inicial eu já tinha faz tempo, e pensava até em colocar num livro inteiro, mas resolvi me desafiar a escrever algo curto, que, de uma vez, já fosse a história inteira. A estrutura de conto é bem diferente de romance, e tive que pensar um bocado. Foi a minha estréia em ficção científica hard, que eu nunca tinha escrito principalmente pela complexidade que eu queria colocar, e por ter pouco tempo para pesquisa. Como o conto é curto, a pesquisa não teve que ser tão extensa, e nem os cálculos. De uma forma ou de outra, fiquei bem feliz com o resultado (e os comentários das pessoas), e pretendo me aventurar com histórias semelhantes no futuro.

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Vício http://oucoisaparecida.com.br/vicio/ http://oucoisaparecida.com.br/vicio/#respond Thu, 27 Jul 2017 00:06:04 +0000 http://oucoisaparecida.com.br/?p=105 leia mais]]>

Lá pelo minuto noventa e cinco ele falou.

“Pshht. Ei.”

Logo antes de piscar encarou o homem ao seu lado, e o volume em seu bolso. Já vinha fazendo isso há pouco mais de vinte minutos, depois de aprender que assim conseguia muito provavelmente manter todos acreditando que olhava fixamente para cima.

Viu os olhos do homem saírem um mínimo do ponto fixo no teto que olhava e seguirem em sua direção, mas o próximo grupo entrou muito rápido e o homem voltou ao estado fingir-de-morto que todos eles estavam. Era um grupo de orientais turistas, e falavam muito em uma língua que nenhum deles entendia.

Qual era o nome daquele cara do seu lado? Era o que menos conhecia dali… Era um poeta ou coisa assim, pelo que ele se lembrava.

“Pshht. Ei. Teller”, disse o Pintor, depois que o grupo de orientais saiu.

“O que foi?”, respondeu ele, muito baixo.

O salão ficava vazio entre um e outro grupo, e o Pintor percebeu que, se fosse fazer algo, teria que ser naquele intervalo.

“Você tem um cigarro?”, sussurrou o pintor.

“Você es…” Outro grupo entrou. Falavam baixo e só observavam os cinco corpos quase imóveis ali abaixo deles, os olhos de todos no teto, as cores escuras e estranhas os envolvendo. Esse era um grupo de magros e quietos; não tiravam fotos. Deviam ser críticos. Malditos críticos. Saíram quase sem falar quando o homem disse que o tempo tinha acabado.

“…Tá maluco?” respondeu Teller ”Isso acaba com a proposta!”

Ele falava muito baixo, mas a água criava um efeito de ampliar o som para eles, por estarem todos parcialmente submersos.

“Eu sei, calma, e…”

Outro grupo.

O Pintor conseguia aguentar aquela água. Aquilo era pouco para ele; era obstinado. Talvez teimoso. A tinta que os envolvia também não o preocupava. Quando teve essa ideia, junto com Carlos (que estava do outro lado da piscina) tinham lhe dito que isso faria mal à sua pele e tudo mais, mas “qualquer preço é pequeno quanto pago pela arte”, ele disse. O grande número deles ali também ajudava a convencê-lo de que aquilo era real e autêntico, incrível. Sua contribuição ao nebuloso campo das manifestações artísticas que envolviam os autores como parte da obra. Estava um tanto perturbado com a ideia de que nunca veria aquilo como os espectadores estavam (já que aquilo não era o tipo de coisa que se fotografava, não), mas até aquilo não o incomodava muito.

Pensou que pensara em tudo; mas esquecera de algo que agora o fazia suar frio enquanto boiava.

“…U não vou foder tudo. Você tem?”

“Não.”

“Como não?” sussurrou o pintor. “Você é um artista. Todo o artista fuma. Eu to vendo o maço no bolso da sua camisa daqui.”

“Eu…” grupo. Muitas fotos. Cinco minutos depois Teller continuou–”…Só tenho a caixa. Assim eu seguro a vontade. Parece que eles tão aqui comigo.”

“Filho da puta!”

“Acho que a Miranda tem.”

Grupo.

Miranda era a única mulher entre os cinco, e estava no meio deles. Houvera uma grande discussão entre elas com o simbolismo que ela teria na obra, estando no meio de quatro homens entre a tela pintada à lá Pollock na água da piscina, mas no final eles usaram o velho truque dos artistas: fizeram sem motivo, e quando alguém sugerisse um bom eles o acatariam de imediato, com aquele sorriso e o “é claro, pensamos nisso desde o início.”

“Psshht. Miranda.” disse o Pintor assim que o grupo se foi. Esperava que, por causa daquele efeito estranho da água, ela ouviria mais facilmente.

“Cala a boca, Gales.” disse a Pintora.

“Me escuta. Você tem um cigarro?”

“Eu tava ouvindo.”

“E tem?”

“Eu…”

Grupo.

Gales não fumaria o cigarro, era óbvio. Aquilo estava totalmente fora de questão, acabaria com a apresentação deles. Mesmo esse pensamento não conseguiu afastar a vontade crescente de fumar. Não conseguia se lembrar de um dia em que havia passado mais de uma hora sem um cigarro na boca desde seus dezesseis anos.

Depois da primeira hora sua vontade quebrou sua lógica com o grande martelo do vício. Precisava de um cigarro. Nem que fosse só para sentir na boca. Precisava.

“Tenho, mas mal tenho como pegar. Vai se foder. Eu falei que você ia foder tudo.”

“Porra Miranda, me ajuda. Eu não quero estragar isso aqui.”

“Você nunca quer.”

Carlos, na outra ponta, não conseguiu segurar uma careta.

“O que…” começou o pintor.

Grupo.

“…Você quis dizer com isso? disse Gales.

“Você sabe. É como naquela vez da viagem pros meus pais.”

No outro lado, o quarto homem sussurrou para Carlos.

“Cara que porra é essa?”

“Eles têm história.”

“Você tinha que…” disse o Pintor.

Grupo. Aplaudiram os artistas, impressionados com a total concentração deles. Um homem tentou contar uma piada para tirá-los do sério, mas, além de falar, foi muito repreendido por todos. Era um lugar de silêncio e apreciação, olhe para os artistas, como são sérios e compenetrados.

“…Falar disso agora? Puta que pariu!”

“Puta que pariu digo eu, seu viciado maldito!”

“Pessoal, isso aqui não é hora pra uma dis…”

Grupo entrou em completo silêncio, e assim permaneceu.

“…scussão de relacionamento.” disse Fontes, o quarto, sem ver a cara de pânico de Carlos.

“Não tem relacionamento!” disse Miranda, fúria feminina encarnada.

“Deixa pra depois. Sério, pessoal, pelo amor de Deus alguém tem um cigarro? Eu nem vou fumar ele de verdade, vou só lamber.”

“Car…”

Grupo.

“…ramba, Gales, eu achei que você era um profissional. Vai tomar no cu e fica quieto.”

“Vai se foder, Fontes, minha merda pinta melhor que você” disse Miranda, para a surpresa de Fontes.

“Porra, você não tava xingando ele até um segundo atrás?”

Grupo.

“Eu…”

“Pessoal, porra, cigarro! Se você vai me defender pode me jogar um cigarro pra eu lamber e todo mundo sai feliz.” interrompeu o pintor.

“Eu não saio feliz depois disso.” disse Miranda.

“Foda-se. Miranda, caralho, ajuda…” disse Carlos.

Grupo.

“Ele.”

“Eu não, ele que se foda.”

“Vai lá, por favor.” continuou Carlos. ”Pensa não nele, mas como todos tão fodidos se isso der errado.

“…Ok, ok.”

“E depois já passa um pra mim.” disse Carlos.

“O…”

Grupo.

“O que?!” disse Miranda, quase falando num tom de voz normal ”Porra, nenhum de vocês aguenta duas horinhas sem uma merda dessas na boca?”

“Eu nem fumo.” disse Fontes.

“E por isso que não pinta nada.” disse Gales.

“Como é?”

Os três tiveram que segurar o riso enquanto o próximo grupo tirava suas fotos mal tiradas.

“Tá, porra, calem a boca. Passa um cigarro pra ele logo, Miranda, eu aguento sem.”

“Ok, ok. Mas quando eu sair daqui vocês todos tão fodidos.”

Como eles estavam quase perfeitamente estáticos na piscina, boiando com a barriga para cima, o movimento do braço de Miranda criou uma perturbação que, por mais que mínima para eles, foi como acordar de um sono profundo com um terremoto.

Um dos do próximo grupo ficou até o último segundo encarando Miranda, tentando entender se a expressão que vira nela por uma fração de segundo fora real ou imaginação.

“O que foi?” perguntou Carlos.

“Eu derrubei do bolso. Merda.”

“O que!?”disse Gales. ”Puta que pariu sua inútil! Agora vai boiar e foder tudo!”

“Afundou, caramba! Você não lembra que eu guardo o isqueiro junto com a carteira? Você…”

Grupo.

“…Não lembra de porra nenhuma, né Gales?”

“Puta que pariu, DR de novo…” disse Fontes.

“Puta que pariu, falei pra não chamar ela.” disse Gales.

“Puta que pariu, você não me disse que tava num desses dias, Miranda…” disse Carlos.

O próximo grupo entrou. Se estivessem ali na apresentação anterior teriam percebido a súbida e incrível mudança na cor do rosto da mulher no centro, que fora da pálida porcelana ao vivo rubro, mas nenhum deles notou.

Ao invés disso, todos, quase ao mesmo tempo, tiraram um pequeno objeto do bolso e levaram em direção ao rosto. Todos os cinco artistas na piscina conseguiram identificar exatamente o que era, mesmo com só Gales encarando diretamente um dos cigarros.

#

“…E é por isso que eu não vou nessas porras.” disse o velho, acendendo o cigarro.

“O que?” disse outro, se sentando na mesa suja do bar, depois de voltar do banheiro.

“Essas porra de arte moderna. Semana passada rolou uma coisa muito fodida, duns caras numa piscina com tinta, uma merda assim…” recomeçou o primeiro, bebendo sua cerveja, enquanto os outros o escutavam de novo.

“…E aí? Eles morreram envenenados?”

“Não, cacete. Entrou um grupo de pessoas lá e, dois segundos depois, quando os organizadores entraram, tavam metendo porrada.”

“Como? Em quem?”

“Sei lá, uns nos outros, nos caras, não sei. Ouvi que tinha uma mulher enfiando um maço de cigarros na boca do cara. Foi uma merda. Foram todos presos.”

“Que merda. Ainda bem que não vou nessas porras.”

“Pois é.”

Os dois viraram mais uma cerveja e voltaram com o papo de futebol.


Esse é outra Writing Prompt, que foi, na época, um baita desafio. Agora que você leu fica fácil, mas imagine você sendo desafiado a escrever uma história onde “um pintor está numa piscina e precisa de um cigarro para lamber”. Acho que, pelo desafio, é um dos meus textos preferidos dessa época.

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A Adega http://oucoisaparecida.com.br/a-adega/ http://oucoisaparecida.com.br/a-adega/#respond Wed, 26 Jul 2017 23:56:33 +0000 http://oucoisaparecida.com.br/?p=103 leia mais]]>

A fechadura rangeu pela milésima vez, mais fácil do que nunca de se abrir. A chave de fenda mal se moveu, e o grampo precisou de só uma passada, tornada mais suave por causa de toda a água. Houvera um toldo acima, mas depois de uma tempestade especialmente forte ele voou, e agora, naqueles dias, Stevenson ficava mais molhado do que antes. Apressou-se para dentro da casa, todos os seus sons encobertos por um trovão próximo, e fechou a porta.

Por um momento só escutou. Guardou as ferramentas no bolso de trás e puxou cuidadosamente o botão do coldre de couro. Congelado no lugar, nem mais sentia o coração acelerar. Das primeiras vezes achou que seria provável encontrar alguém ali. O marido, encobrindo alguma prova que ele esquecera. Quem sabe o jardineiro, aquele que sumiu. Talvez uma pessoa totalmente nova, que em passos rápidos tentaria sair da casa, e terminaria o tormento do velho policial. Mas, pela milésima vez, ninguém veio, então ele ligou a lanterna e foi em direção à cozinha.

Era uma casa grande, do tempo que as paredes tinham detalhes nas bordas, sempre cheias de quadros. Agora tudo cheirava a mofo. Os móveis estavam cuidadosamente embalados em plástico, pequenas poças se formando por causa das goteiras. O chão de madeira já vira dias melhores, e agora rangia furiosamente, mesmo com os passos contidos do leve policial. A parte de baixo da casa tinha ficado basicamente intacta. Uma mancha ali, um teco da porta arrancado aqui, nada demais. O problema estava na parte de cima, mas Stevenson já passara tanto tempo lá que desistiu. Os legistas também olharam toda a superfície. A resposta tinha que estar em algum outro lugar.

Cruzou a sala de jantar, a sala de estar, os quartos de visita do térreo, a enorme cozinha (muito mais verde do que branca, cada dia pior) e chegou finalmente à despensa. Afastou a porta com a lanterna, segurando a respiração como os anos haviam lhe ensinado. A nova dona da casa nunca pousava os pés lá, e não parecia ansiosa em fazê-lo. Nada havia sido tocado desde o incidente, e isso incluía a montanha de comida estragada cujo cheiro parecia capaz de matar. O policial cruzou a sala num passo apressado, sempre com os ouvidos muito atentos a qualquer rangido diferente do que seus pés provocavam, e desceu a pequena escada espiral que havia no canto. O cômodo de baixo não tinha janelas, então ele permitiu-se puxar um fósforo do bolso e acender a meia dúzia de lamparinas de óleo que iluminavam o lugar.

Era um cômodo pequeno, o chão de terra batida coberto com um tapete rústico, vigas grossas de madeira antiga sustentando o teto baixo, de onde meia dúzia de ganchos segurava as lamparinas. Aparentemente era difícil trazer eletricidade à parte baixa da casa, então o marido nunca deixou de usar as tais lamparinas. O policial tivera que enchê-las algumas vezes, e naquele dia estavam cheias, e o cheiro do fogo e do óleo tornando o ambiente um velho conhecido. A chuva era um sussurro distante, junto com os outros sons da cidade. Havia só uma pequena mesa redonda, duas taças empoeiradas em cima, um par de cadeiras rústicas. Stevenson tomou uma delas, e analisou pela vigésima vez as paredes.

Do norte vinha a escada, descendo rente à terra das paredes, que só através dos degraus era visível. Todos os outros cantos eram cobertos pelo rubro e o marrom. Dezenas de estantes, dez centímetros entre uma e outra, talhadas com o formato perfeito, redondo, das garrafas. Centenas de garrafas. Não. Duas mil trezentas e setenta e três; só  dois espaços vagos.  Espalhavam-se numa beleza matemática, todas quase iguais, cobrindo cada centímetro das paredes. Deitadas como bebês. A maioria não tinha rótulo legível; tinha só marcas de cola, números e papéis que se desmanchavam ao toque. O policial tirara todas elas dali, amontoando-as em enormes pirâmides, mas não havia nenhum segredo nas paredes. Analisou garrafa por garrafa, escrito por escrito, fazendo o líquido avermelhado refletir na luz das lamparinas, mas tudo parecia perfeitamente normal. Procurou algum padrão nos sinais escritos, mas, sem o caderno do registro, não conseguia dizer qual vinho era qual. E o caderno fora queimado no incêndio do quarto de cima.

Stevenson caiu pesadamente sobre uma das cadeiras, jogando a bolsa em cima do tapete, criando uma nuvem de pó. Pegou a primeira garrafa que encontrou, uma com a rolha meio tirada, o rótulo ainda existente, e serviu um pouco no copo plástico que levava consigo.

Aquela era sua rotina de sexta à noite, pós expediente. Nas últimas vezes, com os novos vizinhos, limitava-se a entrar na casa só em dias de chuva, mas nos outros ficava à espreita, observando, pensando. Perdera a conta de quantas vezes já estivera ali, na casa, e até ali, no cômodo baixo do vinho. Era o único cômodo que restava.

A memória ainda era fresca, a única coisa viva na carcaça cansada de um policial velho. Vinte anos atrás, aquela casa. Quatro corpos, incêndio, e uma inocente presa. A mulher era inocente; Stevenson apostaria a vida nisso. Apostou a vida nisso. Via nos olhos dela, na inocência. Tinha só vinte e poucos anos quando foi presa no lugar do marido. Houve julgamento, saiu nos jornais, as fotos tirando o fôlego. Como todos puderam acreditar que aquela criaturinha fez tudo aquilo?  Havia digitais, havia armas, os legistas acharam que tudo batia. Mas os olhos da mulher não batiam. Nunca bateram.

Quando o julgamento de cinco dias finalmente terminou, entraram num consenso de que era ela. A menor e mais nova serial killer com tantas vítimas no mundo. Matava lentamente, jogava numa fossa em outro estado. Eram sempre coisas diferentes, prostitutas, homens ricos, homens pobres, mulheres bonitas, mulheres feias. Até a polícia demorou para encontrar o padrão naquilo, o tipo do corte feito, a forma como sempre sangravam até a morte em um lugar e depois eram levados à outro. Até o dia em que uma das vítimas quase escapou, e houve o incêncio.

O marido estivera no julgamento todo, a expressão desolada, olhos sempre vermelhos de lágrimas. Stevenson observara tudo de perto, cada movimento dele, cada palavra dela. O homem era um mestre das máscaras. Já vira gente assim antes, e já entendia muito bem. Era do tipo perigoso de se conversar, e conseguiu fazer sua mágica no juri todo.

A mulher foi presa, ele escapuliu, e todos ficaram felizes com isso. Mas não Stevenson. Não batia. Era o marido, tinha de ser. Ele era maior, mais forte, diabólico com o olhar. Obviamente sumiu do país um ano depois do julgamento, e nunca mais entrou.

O casal viveu a vida toda naquela casa. Os filhos cresceram ali, e o marido antes deles. Psicopatas não fazem seu ofício de graça, sem deslize. Sempre há algum deslize. Alguma coisa que eles guardam, como um troféu, algum lugar onde eles tiram as máscaras e respiram um pouco, quando não podem fazê-lo com uma pessoa amarrada na mesa.

O marido vivia naquele cômodo, segundo os testemunhos. Adorava seus velhos e valiosos vinhos, tomando algumas taças por dia na solidão do quarto baixo. Tinha que estar naquele cômodo, de alguma forma. Tinha que ser ali.

Stevenson já procurara de todas as formas. Usara um detector de metais no chão e nas paredes, procurou por bilhetes, fotos, qualquer coisa, e não havia nada. Só aqueles litros de vinho, que eventualmente ele tomava para ajudá-lo a pensar. Tinha de ser ali.

Cinco anos depois de presa, o país adotara pena de morte. Os prisioneiros em prisão perpétua foram quase todos condenados à injeção letal ou cadeira elétrica, escolha deles. A mulher preferiu injeção. Stevensou viu-a perder a vida, os olhos fecharem-se, já há anos sem vida. Agora não tinha um motivo maior por fazer aquilo, ir até a casa. Era movido pelo olhar da mulher, a inocência, e pela coceira dentro do cérebro, a voz incansável que dizia algo está errado.

Mesmo depois de todos aqueles anos, continuava dizendo.

…Mas cada vez menos. Stevenson bebeu o resto do terceiro copo, fazendo uma careta, e levantou-se. Apagou as lamparinas e se foi. O velho policial nunca bebera muito vinho. De fato, nos últimos anos, só bebia aquele; gole por gole, terminava a coleção do marido. Quem sabe fosse sua vingança, sua pequena compensação. Quem sabe se ele tivesse tomado mais vinhos na vida teria percebido o gosto de sangue.


Esse é a Writing Prompt clássica: a lista de substantivos. Basicamente eu sorteei um substantivo de uma lista e saiu “Adega”, e esse texto veio daí. Um tanto velho e embolorado, mas eu ainda gosto, é um gênero que explorei pouco.

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O Temor de Todos Os Homens http://oucoisaparecida.com.br/o-temor-de-todos-os-homens/ http://oucoisaparecida.com.br/o-temor-de-todos-os-homens/#respond Wed, 26 Jul 2017 23:53:46 +0000 http://oucoisaparecida.com.br/?p=101 leia mais]]>

A humanidade, em sua busca infindável pelo conhecimento e poder, descobriu várias coisas magníficas. A eletricidade, a medicina, o fogo, a água encanada. Para todas essas maravilhas, entretanto, há uma criação desvirtuada, um aborto científico que vai diretamente contra o progresso e crescimento do ser humano. As grandes usinas termoelétricas, as manipulações genéticas, a bomba atômica. E, certamente pior que todos esses outros, uma real abominação da natureza que nunca deveria existir, criado pela tolice e arrogância do ser humano, aquilo que os dois homens encontraram naquela tarde ordinária de quarta-feira.

O banheiro de dois mictórios.

Há três regras não verbalizadas que ditam o comportamento dos homens quando o assunto é mictório. Não se sabe quem foi o grande sábio que as percebeu pela primeira vez, mas num estágio avançado da sociedade todos os homens as conhecem.

3 – Nunca diga nada.

2 – Nunca olhe para os lados.

E a primeira, não só por qualquer coincidência organizacional, mas por ser realmente a mais importante:

1- SEMPRE mantenha um mictório de distância.

O curioso sobre o ser humano é que ele não percebe o quanto essas regras são importantes. O leitor desavisado provavelmente está pensando que isto é uma grande bobagem. Uma tolice da masculinidade frágil.

Foi isso que os dois homens, que entraram no banheiro praticamente ao mesmo tempo, cheios de orgulho, pensaram. Ambos dirigiram-se ao mictório mais próximo e, sem cerimônia, com uma confiança inabalável, invejável, tiraram os membros para fora.

E assim ficaram.

As três regras do mictório normalmente não se aplicam em duas situações muito restritas: quando os envolvidos estão embriagados ou quando os homens atingiram um nível de iluminação social que os libertou desses grandes postulados.

Nenhum dos dois se moveu por um longo tempo. Eram incapazes de urinar.

– Eu consigo. É só ignorar a presença dele.

Esse primeiro pensamento tolo logo foi descartado. Um deles talvez tenha conseguido derramar algumas gotas sobre a cerâmica, o que só piorou sua vontade.

– É impossível. Preciso esperar esse cara ir embora para conseguir.

– Ele vai perceber que eu não estou conseguindo.

– Não vai, ninguém presta atenção no cara do lado.

– A qualquer momento ele vai.

– Eu podia desistir, não podia? Ir embora. Lavar as mãos e fingir que nada de errado está acontecendo. Todo mundo já pensou nisso.  Ele não vai notar, eu procuro outro banheiro.

– É claro que ele vai notar. Depois de todo esse tempo sem fazer nada, ele deve estar prestando atenção. Que tipo de idiota fica na frente do mictório e não mija? Ele dele achar que eu sou um fracasso.

– Que situação ridícula. É só outro cara do meu lado. Eu consigo mijar. É só se concentrar. Lembrar daqueles artigos sobre meditação que li na internet semana passada. Focar nos azulejos.

– É impossível. Não vou conseguir. Preciso esperar ele sair.

Nenhum dos dois sabia, mas aquela era uma ocasião especialmente rara. Por mais que os banheiros de dois mictórios sejam em tal nível terríveis, na maioria das vezes dois homens entram um depois do outro, e o segundo, percebendo intuitivamente o problema que está se metendo, lava as mãos e procura outro banheiro.

Os dois entraram exatamente ao mesmo tempo. Não tiveram escolha.

Poucos seres humanos já viveram uma batalha de emoções e vontades quanto os dois homens. O orgulho gritava na mente, mantendo-os no lugar, apoiado pela vergonha. A dor puxava-os para fora, apoiado pelo senso de ridículo, o bom senso e a lógica. Os três últimos, é claro, não tinham chance real. Nunca foram as forças motivadoras da humanidade, diferentes dos primeiros. A preguiça estava cansada demais para entrar na batalha.

Talvez eles saíssem vivos dali. Depois de algumas horas (dias?) a iluminação social viria, e ambos urinariam ao mesmo tempo, jogando sua humanidade tola pelo ralo e levantando-se homens superiores. Apertariam as mãos (depois de lavadas), reconhecendo o companheirismo e importância um do outro naquela jornada de autodescoberta e sabedoria, e sairiam para espalhar a palavra aos seres humanos ainda presos na ignorância.

Se fosse assim, essa possibilidade realmente verdadeira, os banheiros de dois mictórios seriam uma coisa boa, até. Terríveis por criar tanto sofrimento aos homens, mas bons no sentido de que o sofrimento tinha um propósito, era uma jornada árdua até a grande recompensa do conhecimento. Mas, pelo histórico, isso era difícil de acontecer.

– Meu Deus. Eu vou morrer aqui.

A verdade veio aos dois quase ao mesmo tempo, ambos imóveis em frente ao mictório, o membro nas mãos, e nenhum dos dois esboçou reação nenhuma. Talvez uma lágrima tenha relutado em cair, escorregar pela face e bater nas mãos ocupadas deles, mas podiam usar a desculpa do ar seco, do tempo exagerado com os olhos abertos.

Dali era só questão de tempo. Primeiro a bexiga iria estourar, espalhando uréia e ácidos no corpo. Depois a fome ia cair sobre eles, impossível de saciar. Por fim, não seria o corpo a falhar primeiro; a mente, exausta com aquele nível de estresse, desistiria da vida, e os dois seriam levados por um tranquilo aneurisma espontâneo.

Era uma situação sem saída. A segunda regra os impedia de procurar por soluções ao entorno, a terceira de gritar por ajuda. Insolúvel como óleo na água. Talvez fosse hora de começar a fazer paz com a situação, conformar-se. Fora uma vida boa, cheia de alegrias e tristezas, de trabalho, pessoas, amores, decepções… Podia ser um fim trágico, um acidente de percurso sem muito motivo, mas não era isso que importava no final, era? A jornada é o que importa. Reviveram as próprias vidas, lembrando-se de todos os banheiros que viram, de todas as vezes que sem pensar seguiram as três regras, nunca imaginando que uma situação dessas podia acarretar na última consequência. A sociedade dos homens realmente vive em seu ápice, mas não é capaz de controlar as forças mais intesas das estruturas mentais criadas por milênos, soldadas entre os neurônios de cada homem com a força de…

– Ô! Vocês já terminaram aí?

Os dois homens se viraram por reflexo. A mulher da limpeza estava na porta.

Urinaram, lavaram as mãos e foram embora.


Um dos últimos textos curtos que escrevi, originalmente tinha o título menos chamativo de “inevitável”. Surgido bem onde você tá imaginando mesmo, mas num lugar que, para a minha sorte (ou azar?) tinha mais de dois mictórios.

E não se preocupe, eu lavei as mãos antes de escrever.

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Estacionamento http://oucoisaparecida.com.br/estacionamento/ http://oucoisaparecida.com.br/estacionamento/#respond Fri, 16 Jun 2017 13:25:53 +0000 http://oucoisaparecida.com.br/?p=58 leia mais]]>

E quando deu conta de si estava num estacionamento. O sol de meio dia batia forte em seus ombros cansados. O asfalto quente queimava abaixo da sola de seus sapatos.
Não entendeu o que estava acontecendo. Não sabia onde estava.

Olhou para os lados. Carros.

Olhou para a frente. Filas e filas de carros estacionados, se estendendo até o horizonte.

Virou-se brevemente, e viu que para trás havia uma visão semelhante. Tentou andar para o lado, atravessando uma fileira daqueles veículos, mas somente achou outra fileira deles e outra rua, indo até onde a vista alcançava nos dois lados. Fez isso até ter certeza de que era uma sucessão de ruas paralelas, com aquelas máquinas estacionados nos dois lados. Haviam marcações no chão, algumas placas aqui e acolá, e mais nada.

Verificou os bolsos da calça comprida. Carteira num bolso, chaves no outro. Chaves de algum carro. Um bilhete. Não havia hora nem data nele, somente um número e as palavras “BILHETE DE ESTACIONAMENTO” em letras garrafais e nada amigáveis.

Não havia som. Gritou, e não houve resposta. Subiu num dos carros, para ter uma visão melhor do lugar.

Um mar de veículos em todas as direções. Carros, carros. Uma quantidade incompreensível de carros.

Andou. Não importava muito para onde. Aquelas ruas deveriam levar a algum lugar.

#

Na primeira vez que escureceu dormiu no chão. Escondeu-se entre dois carros (como se houvesse algum perigo), e caiu no sono. A única fonte de luz que havia durante noite era a lua. A paisagem nunca mudava. Quando sentiu fome, ignorou. Quando sentiu sede, também ignorou. Quando não conseguiu mais ignorar, arrombou um carro. Quebrou o vidro, e lá dentro achou uma garrafa d’água. Não houve nenhum som, nenhuma reclamação, nada. Arrombou mais alguns carros da mesma maneira até arranjar alguma comida. Na noite desse dia, quebrou a janela de um carro grande e dormiu no banco do mesmo. Acordou com um susto, porém logo se lembrou de onde estava. Daquele lugar opressivo e bizarro, que não entendia. A dimensão do estacionamento.

Passava os dias caminhando. O único som que ouvia era o de seus próprios passos, e se sua respiração leve. A solidão era… Atroz, cruel, repugnante. Não pensava muito. Não sabia como chegara ali, nem onde estava, nem qual era o motivo por trás daquilo tudo. Não tinha certeza de como saber, então simplesmente continuava caminhando.

Quebrava os vidros de carros procurando por comida, água, e qualquer coisa útil. Achava uma quantidade surpreendente de coisas esquisitas que as pessoas carregavam nos seus veículos, e depois que arranjou uma mochila começou a carregar algumas delas. Isso distraía, tirava sua mente dali. Se começasse a refletir, concluiu, perderia a sanidade.

Um dia o vidro quebrado provocou o apitar do alarme. Tentou por muito tempo desligá-lo, mas foi incapaz. Somente se afastou. No silêncio, ignorar qualquer som era impossível. Teve que andar alguns dias até parar de ouví-lo. Essa cena se tornou comum nas semanas que se passaram, e com o tempo soube diferenciar quais veículos tinham alarmes. Perdeu muitas noites de sono por causa do barulho intermitente que eles causavam na distância.

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Arranjou um caderno, e começou a escrever um pequeno diário. Percebeu que não sabia quanto tempo havia se passado desde o começo. Os dias foram e seriam todos iguais. Houve um começo? Não foi sempre assim?

Percebeu, em certo ponto, que não se lembrava como eram as coisas fora dali. Estava fazendo um esforço imenso para não enlouquecer. Vivia num modo ausente, se esquecendo constantemente da própria existência. Escrevia no caderno, usando a luz interna dos veículos que arrombava, e depois de um tempo sentiu que suas escritas estavam começando a perder a coerência. Parou por um instante, num dia qualquer, e percebeu que havia escrito a palavra “roda” vinte e sete
vezes seguidas, em diagonal, por cima de uma página que já tinha um texto nela.

Enlouqueceu.

Correu, gritou, ligou o alarme de todos os carros que conseguiu, empurrou alguns deles e os fez bater, tirou os pneus de um e os empurrou para o horizonte… Explodiu um carro, jogando um fósforo que achara no tanque de combustível. A explosão foi tão violenta que causou outras em sequência, criou chamas altas.

Acordou no meio da estrada, ferimentos leves (por pura sorte), no total caos solitário que causara. Os alarmes apitavam loucamente, o fogo se erguia alto, as peças de carros quebrados se espalhavam pelo chão… Se surpreendeu com a enorme imperturbabilidade de tudo aquilo, mesmo com aquela barulheira infernal.

Então se afastou. Se afastou o máximo que pode, e pensou um pouco na coisa toda. Passaram-se vários dias até que finalmente se livrou dos sons e do fogo, e estava num lugar exatamente igual ao começo. Carros em ambos os lados, silêncio interminável e morto. Decidiu fazer alguma coisa diferente. Aquilo tudo não estava levando a lugar algum. Aquele não pensar.

Estudou os carros, desmontou vários. Entendeu como desligar o alarme depois de ativado, como abrir a porta de certos modelos sem quebrar os vidros… E depois de algum tempo aprendeu como ligar o motor sem as chaves.

Arranjou uma mangueira, estocou comida e outras coisas úteis, abriu um carro tipo esportivo e pela primeira vez no que pareceram meses dirigiu. Demorou para relembrar como funcionava a embreagem, e como trocar de marcha de forma efetiva, mas depois de algumas horas estava de volta à forma original.

Dirigiu por inúmeros dias. Quando anoitecia parava o carro, procurava por comida e água, enchia o tanque usando a mangueira e dormia. Dirigir deu um novo aspecto àquilo tudo. Alcançava velocidades cada vez maiores na reta, e sempre que via um veículo melhor trocava. Sentia o vento no rosto e a adrenalina. Por muitos dias, isso foi o suficiente.

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Estava num espaço aberto. A diferença foi tanta e tão abrupta que freou o carro, em altíssima velocidade, e quase capotou o mesmo. Saiu do veículo, e olhou em volta.

Atrás de si, a uma distância pequena, estavam os carros do estacionamento. Eles simplesmente paravam, em certo momento, num limite reto. Havia uma infinidade daquelas máquinas malditas até um ponto, e além desse não havia nada. Olhando para os lados via a linha de veículos se estendendo até o horizonte. Não parecia haver nada para a frente. Nada senão o asfalto.

Continuou.

Seguiu por algumas horas, até que os carros desapareceram no horizonte atrás de si. Anoiteceu, mas decidiu continuar. Dirigiu a madrugada inteira, e não viu nada. Na manhã do dia seguinte percebeu que estava num espaço completamente aberto e vazio, para todos os lados.

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Percebeu que não sentia mais fome ou sede. Percebeu que não havia mais noite, e que, apesar de estar claro, não havia mais sol. A gasolina do carro, segundo o mostrador, acabara, mas o veículo continuava cortando aquele vazio.

Somente dirigiu. Por dias, meses, quem sabe anos. Já não percebia a existência do próprio corpo. Era um com o carro, mas sua mente nem mesmo estava ali.

Pensava sobre coisas que entendia plenamente, mas não sabia definir. Já não se lembrava de como era a vida fora daquilo tudo, das pessoas e dos problemas… Do universo como um todo. Por um instante compreendeu a verdade por trás de muito do que há, e atingiu um estado que transcendia a felicidade ou a tristeza.

Já não tinha consciência de si, nem do carro, nem a de coisa alguma. Afinal, praticamente não havia coisa alguma. Se tornou puro pensamento, e dirigir tornou-se tão natural e automático que foi capaz de esquecer-se completamente do que estava fazendo. Saiu de si mesmo, deixou de ser.

E então houve um ponto na distância.

Parar o veículo foi mais difícil e estranho do que imaginava que seria. Passou vários segundos encarando o ponto na distância, sem entender o que era aquilo, tudo aquilo. Aos poucos lembrou-se de que estava vivendo, aparentemente. Teve que relembrar como se tirava o pé do acelerador, como se freava, como se abria a porta, como se andava. Teve que readquirir a consciência sobre si mesmo, e tão logo que conseguiu não conseguia lembrar do que estava pensando em. Aquela compreensão grande que houve, no tempo em que dirigia, sumiu. Aproximou-se do carro estranho que havia no meio do nada.

Não era estranho. Lentamente lembrou-se de todos os inúmeros modelos de carro que vira no passado, no estacionamento, e esse era um deles, mas… Havia algo nele de diferente, de especial. Fitou o veículo por horas, até finalmente perceber o que era. Era um conhecimento de tempos imemoriais, antes do tempo em que dirigira, antes do tempo em que vagara pelo estacionamento.

Caminhou até o seu carro e colocou a chave na fechadura da porta. Destrancou.

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Um carro passou por trás de si. Olhou para trás, num susto, e viu que o veículo passara a centímetros de seu corpo imóvel.

No que estava pensando mesmo? Não conseguia se lembrar. Mas teve aquela sensação que era algo longo, importante, algo assim. Onde estava? Ah, é claro, no estacionamento. Olhou para a frente e viu a saída. Olhou para trás e viu a cerca de metal que era o limite do lugar. Estranho, não havia nenhum carro em volta do seu.

Entrou em seu carro, e deu a partida. O ronco do motor o despertou mais ainda daquele estado um tanto ausente. Tirou do bolso o bilhete do estacionamento e dinheiro trocado para pagar. Não se lembrava direito do curto percurso que fizera da entrada do estacionamento até seu carro. No que estivera pensando naqueles míseros minutos? Bom, não deveria ser nada de muito importante, já que não se lembrava de nenhum detalhe.

Engatou a ré e foi embora.


Nossa, esse texto é velho. Realmente velho, antes de eu levar essa coisa de escrever mais a sério. Na época que escrever era ainda só um impulso pouco direcionado, uma ânsia sem propósito claro.

Eu ainda gosto dele, muito pelo que representa pra mim, um dos primeiros textos que escrevi sem ninguém me pedir, e que mostrei por aí. Achei que era um bom ponto de início pra este site novo. Um ponto de início para a minha escrita.

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