O Homem Dos Olhos Opacos

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Caminhava a passos lentos pela rua. Prestava atenção no tempo, nas nuvens ralas que se arrastavam pelo céu claro. Nos pequenos pássaros que cantavam numa praça próxima. No seu próprio andar.

Os passantes notavam algo estranho em sua expressão, e ele notava a curiosidade dos mesmos. Eles viam no rosto do homem o nada. Uma expressão séria, não tão séria a ponto de ser confundida com tristeza, mas ao mesmo tempo tão séria que era quase indiferente. E era isso que a maioria das pessoas pensava: indiferença. Era só um homem pensando, fora do momento. Alheio àquilo tudo.

Alguns viam que não era bem esse o caso. Aqueles que encaravam os olhos do homem viam algo a mais… Me desculpe, não são bem essas as palavras. Viam a ausência. Seus olhos eram de um opaco estranho, indescritível. Não havia nada por trás deles. Não havia nada por trás dele.

Era só um homem indo para casa. Se fosse um mínimo diferente do que era, riria ao perceber que alguns passantes achavam que estava fora dali, perdido em pensamento. Era o completo contrário. Estava mais atento que qualquer passante ordinário. Seus olhos opacos viam tudo. Mas só viam a luz; nada mais. Não havia reflexão. As coisas eram o que eram, frias e reais.

Não havia nada por trás de nada. Era tudo simples e morto.

Quase tão simples e morto quanto seus próprios olhos opacos.

Carregava uma maleta quase vazia, balançando a cada passo, contendo papéis e outros pequenos objetos. Porém, ali, só haviam duas coisas que realmente importavam: os dois momentos do dia. Eram as únicas duas coisas que ele gostaria de levar a salvo para casa. Eram parte dele.

E então houve o inesperado. Fugindo da aglomeração, o homem inconscientemente virou uma esquina no intuito de tomar outro caminho para casa. E se deparou com um lugar familiar.

Familiar demais.

Do opaco dos olhos do homem veio um brilho escuro, e a expressão tomou seu rosto. Lembrança. Felicidade. Saudade. Dor.

Sua face voltou ao normal em uma fração de segundo. O brilho nos olhos, entretanto, continuava lá. E isso mudava tudo no homem. Era como outra pessoa, que não se podia confundir com o homem de passos lentos e expressão pétrea que habitava aquele corpo até poucos instantes. É um tanto difícil de explicar.

O seu passo aumentou. Entrou numa ruela no sentido oposto ao qual estava indo, e logo percebeu seu erro. “E veja, a emoção já me faz cometer pequenos erros”.

Havia um banco. Ele se sentou.

Abriu a maleta furiosamente, com mãos rápidas e trêmulas, e não teve dificuldade em achar um bolo de folhas em branco e um lápis bem apontado. Colocou o bolo de folhas em cima da maleta, no colo, e pôs-se a escrever. Não houve pausa, reflexão sobre as palavras que estavam por vir. Ele simplesmente as deixavou fluir.

Estranhamente nenhum passante notou a estranheza daquilo tudo. Só ignoravam o homem, que escrevia violentamente.

Escreveu por quase uma hora. Não havia descanso para seu lápis, a não ser nas duas vezes que teve que parar para apontá-lo. Não lia o que escrevia. Quando uma folha acabava, colocava-a atrás do bolo e continuava. Não escrevia nos versos. Talvez escrevesse em versos. Simplesmente escrevia. Punha tudo aquilo no papel. Aprisionava aquele pedaço de si mesmo.

E por fim terminou. Pegou todas as folhas escritas, hesitou, e rabiscou um título na primeira. Tirou um clipe do bolso da camisa e prendeu-as juntas. Fechou os olhos e suspirou.

E abriu os olhos novamente. Opacos como a pedra.

#

O apartamento não tinha cheiro algum. Não havia, também, som que o identificasse. Era somente um pequeno lar. Não haviam fotos espalhadas pelas paredes e pela mobília fosca, nem pequenos traços de personalidade ou de memórias. Era tudo prático, arrumado… Morto. Todos os objetos dispostos em lugares pensados, como numa exposição. Intocado.

O homem logo entrou no quarto e sentou-se na cadeira da escrivaninha. Colocou sua pasta em cima da mesa, do lado da lustrosa máquina de escrever, e tirou três pequenos bolos de papel da pasta. Não olhou para eles, nem leu seus títulos. Ele achava que ler o que havia acabado de escrever tornava o processo de livrar-se de tudo mais difícil.

Abriu a gaveta inferior do arquivo em baixo da mesa. Haviam diversas pastas, inúmeras pastas, todas com bolos de papel… E ele passou os olhos mortos pelas palavras em cima de cada pasta: Felicidade, Tristeza. Dor, Saudade. Indiferença. Impotência. Decepção. Raiva, Ódio. Tudo impecável, as folhas em ordem. Pensou por um instante, a expressão ainda morta, e colocou cada uma dos três bolos de folhas em pastas diferentes. Mecânico. Automático. Impensado.

Olhou no relógio, e se surpreendeu ao perceber o quão tarde era. O dia seguinte era… O dia seguinte. Precisava acordar cedo. Precisava acordar e viver. Era tudo que tinha.

Mas antes precisava ler, se lembrar. Quando, há muito tempo atrás, o homem decidira que iria viver desta forma, prometeu a si mesmo que não se esqueceria das emoções. Se, algum dia esquecesse por completo, perderia sua humanidade.

Ultimamente os seus textos andavam escassos. Lembrava-se do dia em que escrevia o dia inteiro, quase sem pausa. Cada pequena coisa despertava emoção nele. E precisava livrar-se dela.

Precisava contê-la com suas palavras. Assim a emoção estaria para sempre ali, acessível quando ele quisesse, mas sob controle. O homem nunca seria regido por suas emoções. E também não as reprimiria. Escrevia todas elas, e elas se esvaiam…

As palavras que usava não eram relacionadas ao que sentia. Não, não, era algo indireto.

Escrevia praticamente de tudo. Haviam poemas, frases soltas. Crônicas, narrativas…Mas tudo isso não importava, na realidade. Havia emoção nas palavras, quaisquer que fossem elas. E isso era tudo o que elas precisavam conter.

Depois de passar os dedos por entre as pastas, puxou algumas folhas, juntas por um grampo, e começou a ler. Puxara as folhas da pasta intitulada “Felicidade”. Eram só três folhas, mas estas estavam escritas tanto na frente como verso.

E o brilho voltou aos olhos do homem. E ele sorriu. Um sorriso autêntico, feliz. Leu vagarosamente, aproveitando todos os momentos daquilo… E ao final da terceira folha estava rindo baixinho. Pareceu uma criança, tão feliz em sua inocência. Tão cheio daquela felicidade pura, incorruptível.

Guardou a folha na pasta, novamente, ainda sorrindo… E a felicidade foi morrendo dentro de si. Encarava a gaveta aberta do arquivo com a expressão pétrea, imutável. Sob controle.

E então, só então, olhou para a gaveta de cima. Nesta, além de uma fechadura, havia um grosso cadeado de bronze. Sentiu as chaves pendendo em volta do pescoço, e houve dúvida.

Não me entenda mal, era uma dúvida puramente lógica. Não havia emoção alguma. Pensava nos números, nas reações passadas…

Naquela gaveta estavam guardadas suas emoções mais preciosas. Não eram simplesmente coisas do cotidiano; eram as emoções que tinham a maior influência sobre ele, e, por conta disso, eram as mais perigosas. Toda a vez, até então, que tentara senti-las tivera que escrever novamente só para livrar-se do vestígio daquelas emoções. Eram os grandes momentos simples da sua vida, alguns nem tão simples, todos presos eternamente por palavras.

Suas palavras eram fortes, não o leve a mal… Mas ele não tinha certeza se era. Mesmo presas por entre as grossas barras de ferro verbal, achava que o que elas tinham a lhe dizer já seriam o suficiente para lhe causar emoção. Não tinha medo disso, veja bem, só achava que poderia acontecer. Seu medo estava todo bem guardado, numa pasta escura no fundo da gaveta de baixo.

Estava pronto. Concluiu isso usando toda a sua lógica. Já haviam se passado meses desde que fracassara pela última vez. Tirou a corrente de volta do pescoço e abriu a gaveta de cima.

Estava bem menos cheia que a de baixo. Havia apenas meia dúzia de pastas, todas sem título, e alguns papéis soltos no fundo.

Se o homem sentisse emoção como qualquer um de nós, teria ficado confiante com o fato de que sua mão não tremeu quando tocou uma das folhas do fundo, e teria se orgulhado de si mesmo.

Teria se lembrado da última vez que lera aquela folha em específico, e se inundado com a lembrança quase precisa da sensação. Mas nada disso aconteceu. Apenas pegou a folha, e leu seu título:

“Ilusão”.

Eram só algumas frases soltas, três ou quatro pequenos parágrafos. Para o leitor desatento tudo aquilo certamente soaria só como uma divagação, uma tentativa pífia de poema, qualquer coisa nesse nível. O leitor um pouco mais atento perceberia o peso naquelas palavras todas, mas não conseguiria distinguir muito bem, não conseguiria ligar os pontos…

O homem sem emoção era o mais atento dos leitores. E entre a torrente de emoções que se seguiram, vieram algumas que não deveriam estar lá. Decepção, medo, angústia. Ele não estava pronto. Não conseguiria se livrar daquela sensação, fundo no peito, da mesma forma que se livrara da felicidade de antes. Subestimara as suas palavras do passado.

Guardou a folha de volta no arquivo, mas desta vez pelo menos fora capaz de guardá-la na pasta. Suas mãos tremiam de leve. Seus olhos pareciam prestes a explodir. Sua expressão continuava séria, mas… Por mais semelhante que era da mesma expressão que usava no dia-a-dia, havia um peso tão grande nela que não se podia descrever.

O homem sem emoção escreveu, uma vez, um texto sobre orgulho, por um dia ter sentido orgulho de não usar máscara alguma. De ser exatamente o que se via. Sua expressão do dia-a-dia era perturbadora como o vazio silencioso e morto que havia dentro de si. Não era feliz, não era triste. Mas era um espelho perfeito de como se sentia. De como não sentia.

Não era exceção agora. Artistas morreriam para conseguir capturar toda a tristeza daquela face em uma tela. Mas ninguém jamais veria aquilo. Jamais.

E então o homem dos olhos opacos fez o que fazia de melhor. Escreveu. Pôs os dedos na máquina lustrosa e digitou ferozmente, com os sons do aparelho rugindo pelo cômodo como uma metralhadora. Não seria tão forte quanto a folha solitária que lera, mas conteria os resquícios daquela emoção. Precisava conter.

O que seria de si se não contivessem? Não conseguiria viver assim. Não com aquilo no peito. Não consigo mesmo.

Emoção já reinara sua vida, e os textos que falam sobre as memórias desse tempo não são todos agradáveis. Não queria voltar a ser como era. Precisava escrever. O homem não via isso como fugir, não. Era mais nobre. As emoções ficavam lá, e ele as lia. As sentia. Mais intensamente do que qualquer memória poderia ser. Suas palavras eram precisas.

Todas emoções que tivera por um longo tempo. Todas presas no tempo, imaculadas.

#

Os olhos do homem sem emoção se abriram com o som do despertador. Havia brilho neles, diferente de todos os brilhos que haviam surgido na véspera.

É claro que ele se lembrou dos três textos que escreveu. Lembrou das palavras de forma quase precisa, naquele momento inconsciente do acordar.Mas não sentiu emoção alguma ao fazê-lo.

Claro que se lembrou das palavras duras e carregadas da mais autêntica emoção que lera no dia anterior, e das várias páginas que escrevera para conter os sentimentos que surgiram com a leitura. Lembrou-se de como aquilo havia o dominado, e como conseguira, com muito esforço, tirar aquilo de si. Mas isso, também, não o fez sentir nada.

O que trouxe o brilho aos seus olhos era algo diferente, a única coisa que seu plano perfeito de vida não conseguia controlar. A expressão máxima do poder da sua mente agindo sobre ele.

Alguns segundos depois ele se levantaria, e provavelmente não escreveria. Mas por ora estava tomado por estranhas emoções, estranhas e incontroláveis.

Porque você vê, o homem sem emoção sonhava. E nos sonhos não há como controlar a própria mente, nem o que ela vê e sente.


Nossa. Esse texto é velho. Tive que fazer um esforço pra não reeditar todo ele, tirar os advérbios, trocar as frases, deixar mais concreto, mais direto, mas incisivo… É engraçado como o nosso senso do que é bom vai se alterando com o tempo. Engraçado principalmente por escrita ser, essencialmente, algo subjetivo. Fica difícil manter uma opinião fixa sobre o que é bom e o que é ruim, e é muito fácil se perder em espirais de “meu deus será que eu só piorei, será que nessa época que eu realmente sabia o que eu tava fazendo”… Acho que essa é uma das horas que o escritor tem que ter um pouco de convicção na intuição dele. E a minha intuição diz que esse texto aí em cima tem tanto a melhorar…

Mas ainda é um texto importante pra mim. Junto com o Estacionamento, é um dos primeiros textos que escrevi “sem precisar”. E, sobre a qualidade dele, acho é válida uma citação do Luís Fernando Veríssimo, de seu livro “Os Espiões”:

O Dubin dizia que a má literatura é a literatura em estado puro, intocada por distrações como estilo, invenção, graça ou significado, reduzida apenas ao ímpeto de escrever, à magnífica compulsão.

Um brinde à má literatura, eu suponho.