Estacionamento

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E quando deu conta de si estava num estacionamento. O sol de meio dia batia forte em seus ombros cansados. O asfalto quente queimava abaixo da sola de seus sapatos.
Não entendeu o que estava acontecendo. Não sabia onde estava.

Olhou para os lados. Carros.

Olhou para a frente. Filas e filas de carros estacionados, se estendendo até o horizonte.

Virou-se brevemente, e viu que para trás havia uma visão semelhante. Tentou andar para o lado, atravessando uma fileira daqueles veículos, mas somente achou outra fileira deles e outra rua, indo até onde a vista alcançava nos dois lados. Fez isso até ter certeza de que era uma sucessão de ruas paralelas, com aquelas máquinas estacionados nos dois lados. Haviam marcações no chão, algumas placas aqui e acolá, e mais nada.

Verificou os bolsos da calça comprida. Carteira num bolso, chaves no outro. Chaves de algum carro. Um bilhete. Não havia hora nem data nele, somente um número e as palavras “BILHETE DE ESTACIONAMENTO” em letras garrafais e nada amigáveis.

Não havia som. Gritou, e não houve resposta. Subiu num dos carros, para ter uma visão melhor do lugar.

Um mar de veículos em todas as direções. Carros, carros. Uma quantidade incompreensível de carros.

Andou. Não importava muito para onde. Aquelas ruas deveriam levar a algum lugar.

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Na primeira vez que escureceu dormiu no chão. Escondeu-se entre dois carros (como se houvesse algum perigo), e caiu no sono. A única fonte de luz que havia durante noite era a lua. A paisagem nunca mudava. Quando sentiu fome, ignorou. Quando sentiu sede, também ignorou. Quando não conseguiu mais ignorar, arrombou um carro. Quebrou o vidro, e lá dentro achou uma garrafa d’água. Não houve nenhum som, nenhuma reclamação, nada. Arrombou mais alguns carros da mesma maneira até arranjar alguma comida. Na noite desse dia, quebrou a janela de um carro grande e dormiu no banco do mesmo. Acordou com um susto, porém logo se lembrou de onde estava. Daquele lugar opressivo e bizarro, que não entendia. A dimensão do estacionamento.

Passava os dias caminhando. O único som que ouvia era o de seus próprios passos, e se sua respiração leve. A solidão era… Atroz, cruel, repugnante. Não pensava muito. Não sabia como chegara ali, nem onde estava, nem qual era o motivo por trás daquilo tudo. Não tinha certeza de como saber, então simplesmente continuava caminhando.

Quebrava os vidros de carros procurando por comida, água, e qualquer coisa útil. Achava uma quantidade surpreendente de coisas esquisitas que as pessoas carregavam nos seus veículos, e depois que arranjou uma mochila começou a carregar algumas delas. Isso distraía, tirava sua mente dali. Se começasse a refletir, concluiu, perderia a sanidade.

Um dia o vidro quebrado provocou o apitar do alarme. Tentou por muito tempo desligá-lo, mas foi incapaz. Somente se afastou. No silêncio, ignorar qualquer som era impossível. Teve que andar alguns dias até parar de ouví-lo. Essa cena se tornou comum nas semanas que se passaram, e com o tempo soube diferenciar quais veículos tinham alarmes. Perdeu muitas noites de sono por causa do barulho intermitente que eles causavam na distância.

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Arranjou um caderno, e começou a escrever um pequeno diário. Percebeu que não sabia quanto tempo havia se passado desde o começo. Os dias foram e seriam todos iguais. Houve um começo? Não foi sempre assim?

Percebeu, em certo ponto, que não se lembrava como eram as coisas fora dali. Estava fazendo um esforço imenso para não enlouquecer. Vivia num modo ausente, se esquecendo constantemente da própria existência. Escrevia no caderno, usando a luz interna dos veículos que arrombava, e depois de um tempo sentiu que suas escritas estavam começando a perder a coerência. Parou por um instante, num dia qualquer, e percebeu que havia escrito a palavra “roda” vinte e sete
vezes seguidas, em diagonal, por cima de uma página que já tinha um texto nela.

Enlouqueceu.

Correu, gritou, ligou o alarme de todos os carros que conseguiu, empurrou alguns deles e os fez bater, tirou os pneus de um e os empurrou para o horizonte… Explodiu um carro, jogando um fósforo que achara no tanque de combustível. A explosão foi tão violenta que causou outras em sequência, criou chamas altas.

Acordou no meio da estrada, ferimentos leves (por pura sorte), no total caos solitário que causara. Os alarmes apitavam loucamente, o fogo se erguia alto, as peças de carros quebrados se espalhavam pelo chão… Se surpreendeu com a enorme imperturbabilidade de tudo aquilo, mesmo com aquela barulheira infernal.

Então se afastou. Se afastou o máximo que pode, e pensou um pouco na coisa toda. Passaram-se vários dias até que finalmente se livrou dos sons e do fogo, e estava num lugar exatamente igual ao começo. Carros em ambos os lados, silêncio interminável e morto. Decidiu fazer alguma coisa diferente. Aquilo tudo não estava levando a lugar algum. Aquele não pensar.

Estudou os carros, desmontou vários. Entendeu como desligar o alarme depois de ativado, como abrir a porta de certos modelos sem quebrar os vidros… E depois de algum tempo aprendeu como ligar o motor sem as chaves.

Arranjou uma mangueira, estocou comida e outras coisas úteis, abriu um carro tipo esportivo e pela primeira vez no que pareceram meses dirigiu. Demorou para relembrar como funcionava a embreagem, e como trocar de marcha de forma efetiva, mas depois de algumas horas estava de volta à forma original.

Dirigiu por inúmeros dias. Quando anoitecia parava o carro, procurava por comida e água, enchia o tanque usando a mangueira e dormia. Dirigir deu um novo aspecto àquilo tudo. Alcançava velocidades cada vez maiores na reta, e sempre que via um veículo melhor trocava. Sentia o vento no rosto e a adrenalina. Por muitos dias, isso foi o suficiente.

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Estava num espaço aberto. A diferença foi tanta e tão abrupta que freou o carro, em altíssima velocidade, e quase capotou o mesmo. Saiu do veículo, e olhou em volta.

Atrás de si, a uma distância pequena, estavam os carros do estacionamento. Eles simplesmente paravam, em certo momento, num limite reto. Havia uma infinidade daquelas máquinas malditas até um ponto, e além desse não havia nada. Olhando para os lados via a linha de veículos se estendendo até o horizonte. Não parecia haver nada para a frente. Nada senão o asfalto.

Continuou.

Seguiu por algumas horas, até que os carros desapareceram no horizonte atrás de si. Anoiteceu, mas decidiu continuar. Dirigiu a madrugada inteira, e não viu nada. Na manhã do dia seguinte percebeu que estava num espaço completamente aberto e vazio, para todos os lados.

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Percebeu que não sentia mais fome ou sede. Percebeu que não havia mais noite, e que, apesar de estar claro, não havia mais sol. A gasolina do carro, segundo o mostrador, acabara, mas o veículo continuava cortando aquele vazio.

Somente dirigiu. Por dias, meses, quem sabe anos. Já não percebia a existência do próprio corpo. Era um com o carro, mas sua mente nem mesmo estava ali.

Pensava sobre coisas que entendia plenamente, mas não sabia definir. Já não se lembrava de como era a vida fora daquilo tudo, das pessoas e dos problemas… Do universo como um todo. Por um instante compreendeu a verdade por trás de muito do que há, e atingiu um estado que transcendia a felicidade ou a tristeza.

Já não tinha consciência de si, nem do carro, nem a de coisa alguma. Afinal, praticamente não havia coisa alguma. Se tornou puro pensamento, e dirigir tornou-se tão natural e automático que foi capaz de esquecer-se completamente do que estava fazendo. Saiu de si mesmo, deixou de ser.

E então houve um ponto na distância.

Parar o veículo foi mais difícil e estranho do que imaginava que seria. Passou vários segundos encarando o ponto na distância, sem entender o que era aquilo, tudo aquilo. Aos poucos lembrou-se de que estava vivendo, aparentemente. Teve que relembrar como se tirava o pé do acelerador, como se freava, como se abria a porta, como se andava. Teve que readquirir a consciência sobre si mesmo, e tão logo que conseguiu não conseguia lembrar do que estava pensando em. Aquela compreensão grande que houve, no tempo em que dirigia, sumiu. Aproximou-se do carro estranho que havia no meio do nada.

Não era estranho. Lentamente lembrou-se de todos os inúmeros modelos de carro que vira no passado, no estacionamento, e esse era um deles, mas… Havia algo nele de diferente, de especial. Fitou o veículo por horas, até finalmente perceber o que era. Era um conhecimento de tempos imemoriais, antes do tempo em que dirigira, antes do tempo em que vagara pelo estacionamento.

Caminhou até o seu carro e colocou a chave na fechadura da porta. Destrancou.

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Um carro passou por trás de si. Olhou para trás, num susto, e viu que o veículo passara a centímetros de seu corpo imóvel.

No que estava pensando mesmo? Não conseguia se lembrar. Mas teve aquela sensação que era algo longo, importante, algo assim. Onde estava? Ah, é claro, no estacionamento. Olhou para a frente e viu a saída. Olhou para trás e viu a cerca de metal que era o limite do lugar. Estranho, não havia nenhum carro em volta do seu.

Entrou em seu carro, e deu a partida. O ronco do motor o despertou mais ainda daquele estado um tanto ausente. Tirou do bolso o bilhete do estacionamento e dinheiro trocado para pagar. Não se lembrava direito do curto percurso que fizera da entrada do estacionamento até seu carro. No que estivera pensando naqueles míseros minutos? Bom, não deveria ser nada de muito importante, já que não se lembrava de nenhum detalhe.

Engatou a ré e foi embora.


Nossa, esse texto é velho. Realmente velho, antes de eu levar essa coisa de escrever mais a sério. Na época que escrever era ainda só um impulso pouco direcionado, uma ânsia sem propósito claro.

Eu ainda gosto dele, muito pelo que representa pra mim, um dos primeiros textos que escrevi sem ninguém me pedir, e que mostrei por aí. Achei que era um bom ponto de início pra este site novo. Um ponto de início para a minha escrita.