A Adega

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A fechadura rangeu pela milésima vez, mais fácil do que nunca de se abrir. A chave de fenda mal se moveu, e o grampo precisou de só uma passada, tornada mais suave por causa de toda a água. Houvera um toldo acima, mas depois de uma tempestade especialmente forte ele voou, e agora, naqueles dias, Stevenson ficava mais molhado do que antes. Apressou-se para dentro da casa, todos os seus sons encobertos por um trovão próximo, e fechou a porta.

Por um momento só escutou. Guardou as ferramentas no bolso de trás e puxou cuidadosamente o botão do coldre de couro. Congelado no lugar, nem mais sentia o coração acelerar. Das primeiras vezes achou que seria provável encontrar alguém ali. O marido, encobrindo alguma prova que ele esquecera. Quem sabe o jardineiro, aquele que sumiu. Talvez uma pessoa totalmente nova, que em passos rápidos tentaria sair da casa, e terminaria o tormento do velho policial. Mas, pela milésima vez, ninguém veio, então ele ligou a lanterna e foi em direção à cozinha.

Era uma casa grande, do tempo que as paredes tinham detalhes nas bordas, sempre cheias de quadros. Agora tudo cheirava a mofo. Os móveis estavam cuidadosamente embalados em plástico, pequenas poças se formando por causa das goteiras. O chão de madeira já vira dias melhores, e agora rangia furiosamente, mesmo com os passos contidos do leve policial. A parte de baixo da casa tinha ficado basicamente intacta. Uma mancha ali, um teco da porta arrancado aqui, nada demais. O problema estava na parte de cima, mas Stevenson já passara tanto tempo lá que desistiu. Os legistas também olharam toda a superfície. A resposta tinha que estar em algum outro lugar.

Cruzou a sala de jantar, a sala de estar, os quartos de visita do térreo, a enorme cozinha (muito mais verde do que branca, cada dia pior) e chegou finalmente à despensa. Afastou a porta com a lanterna, segurando a respiração como os anos haviam lhe ensinado. A nova dona da casa nunca pousava os pés lá, e não parecia ansiosa em fazê-lo. Nada havia sido tocado desde o incidente, e isso incluía a montanha de comida estragada cujo cheiro parecia capaz de matar. O policial cruzou a sala num passo apressado, sempre com os ouvidos muito atentos a qualquer rangido diferente do que seus pés provocavam, e desceu a pequena escada espiral que havia no canto. O cômodo de baixo não tinha janelas, então ele permitiu-se puxar um fósforo do bolso e acender a meia dúzia de lamparinas de óleo que iluminavam o lugar.

Era um cômodo pequeno, o chão de terra batida coberto com um tapete rústico, vigas grossas de madeira antiga sustentando o teto baixo, de onde meia dúzia de ganchos segurava as lamparinas. Aparentemente era difícil trazer eletricidade à parte baixa da casa, então o marido nunca deixou de usar as tais lamparinas. O policial tivera que enchê-las algumas vezes, e naquele dia estavam cheias, e o cheiro do fogo e do óleo tornando o ambiente um velho conhecido. A chuva era um sussurro distante, junto com os outros sons da cidade. Havia só uma pequena mesa redonda, duas taças empoeiradas em cima, um par de cadeiras rústicas. Stevenson tomou uma delas, e analisou pela vigésima vez as paredes.

Do norte vinha a escada, descendo rente à terra das paredes, que só através dos degraus era visível. Todos os outros cantos eram cobertos pelo rubro e o marrom. Dezenas de estantes, dez centímetros entre uma e outra, talhadas com o formato perfeito, redondo, das garrafas. Centenas de garrafas. Não. Duas mil trezentas e setenta e três; só  dois espaços vagos.  Espalhavam-se numa beleza matemática, todas quase iguais, cobrindo cada centímetro das paredes. Deitadas como bebês. A maioria não tinha rótulo legível; tinha só marcas de cola, números e papéis que se desmanchavam ao toque. O policial tirara todas elas dali, amontoando-as em enormes pirâmides, mas não havia nenhum segredo nas paredes. Analisou garrafa por garrafa, escrito por escrito, fazendo o líquido avermelhado refletir na luz das lamparinas, mas tudo parecia perfeitamente normal. Procurou algum padrão nos sinais escritos, mas, sem o caderno do registro, não conseguia dizer qual vinho era qual. E o caderno fora queimado no incêndio do quarto de cima.

Stevenson caiu pesadamente sobre uma das cadeiras, jogando a bolsa em cima do tapete, criando uma nuvem de pó. Pegou a primeira garrafa que encontrou, uma com a rolha meio tirada, o rótulo ainda existente, e serviu um pouco no copo plástico que levava consigo.

Aquela era sua rotina de sexta à noite, pós expediente. Nas últimas vezes, com os novos vizinhos, limitava-se a entrar na casa só em dias de chuva, mas nos outros ficava à espreita, observando, pensando. Perdera a conta de quantas vezes já estivera ali, na casa, e até ali, no cômodo baixo do vinho. Era o único cômodo que restava.

A memória ainda era fresca, a única coisa viva na carcaça cansada de um policial velho. Vinte anos atrás, aquela casa. Quatro corpos, incêndio, e uma inocente presa. A mulher era inocente; Stevenson apostaria a vida nisso. Apostou a vida nisso. Via nos olhos dela, na inocência. Tinha só vinte e poucos anos quando foi presa no lugar do marido. Houve julgamento, saiu nos jornais, as fotos tirando o fôlego. Como todos puderam acreditar que aquela criaturinha fez tudo aquilo?  Havia digitais, havia armas, os legistas acharam que tudo batia. Mas os olhos da mulher não batiam. Nunca bateram.

Quando o julgamento de cinco dias finalmente terminou, entraram num consenso de que era ela. A menor e mais nova serial killer com tantas vítimas no mundo. Matava lentamente, jogava numa fossa em outro estado. Eram sempre coisas diferentes, prostitutas, homens ricos, homens pobres, mulheres bonitas, mulheres feias. Até a polícia demorou para encontrar o padrão naquilo, o tipo do corte feito, a forma como sempre sangravam até a morte em um lugar e depois eram levados à outro. Até o dia em que uma das vítimas quase escapou, e houve o incêncio.

O marido estivera no julgamento todo, a expressão desolada, olhos sempre vermelhos de lágrimas. Stevenson observara tudo de perto, cada movimento dele, cada palavra dela. O homem era um mestre das máscaras. Já vira gente assim antes, e já entendia muito bem. Era do tipo perigoso de se conversar, e conseguiu fazer sua mágica no juri todo.

A mulher foi presa, ele escapuliu, e todos ficaram felizes com isso. Mas não Stevenson. Não batia. Era o marido, tinha de ser. Ele era maior, mais forte, diabólico com o olhar. Obviamente sumiu do país um ano depois do julgamento, e nunca mais entrou.

O casal viveu a vida toda naquela casa. Os filhos cresceram ali, e o marido antes deles. Psicopatas não fazem seu ofício de graça, sem deslize. Sempre há algum deslize. Alguma coisa que eles guardam, como um troféu, algum lugar onde eles tiram as máscaras e respiram um pouco, quando não podem fazê-lo com uma pessoa amarrada na mesa.

O marido vivia naquele cômodo, segundo os testemunhos. Adorava seus velhos e valiosos vinhos, tomando algumas taças por dia na solidão do quarto baixo. Tinha que estar naquele cômodo, de alguma forma. Tinha que ser ali.

Stevenson já procurara de todas as formas. Usara um detector de metais no chão e nas paredes, procurou por bilhetes, fotos, qualquer coisa, e não havia nada. Só aqueles litros de vinho, que eventualmente ele tomava para ajudá-lo a pensar. Tinha de ser ali.

Cinco anos depois de presa, o país adotara pena de morte. Os prisioneiros em prisão perpétua foram quase todos condenados à injeção letal ou cadeira elétrica, escolha deles. A mulher preferiu injeção. Stevensou viu-a perder a vida, os olhos fecharem-se, já há anos sem vida. Agora não tinha um motivo maior por fazer aquilo, ir até a casa. Era movido pelo olhar da mulher, a inocência, e pela coceira dentro do cérebro, a voz incansável que dizia algo está errado.

Mesmo depois de todos aqueles anos, continuava dizendo.

…Mas cada vez menos. Stevenson bebeu o resto do terceiro copo, fazendo uma careta, e levantou-se. Apagou as lamparinas e se foi. O velho policial nunca bebera muito vinho. De fato, nos últimos anos, só bebia aquele; gole por gole, terminava a coleção do marido. Quem sabe fosse sua vingança, sua pequena compensação. Quem sabe se ele tivesse tomado mais vinhos na vida teria percebido o gosto de sangue.


Esse é a Writing Prompt clássica: a lista de substantivos. Basicamente eu sorteei um substantivo de uma lista e saiu “Adega”, e esse texto veio daí. Um tanto velho e embolorado, mas eu ainda gosto, é um gênero que explorei pouco.

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