Vício

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Lá pelo minuto noventa e cinco ele falou.

“Pshht. Ei.”

Logo antes de piscar encarou o homem ao seu lado, e o volume em seu bolso. Já vinha fazendo isso há pouco mais de vinte minutos, depois de aprender que assim conseguia muito provavelmente manter todos acreditando que olhava fixamente para cima.

Viu os olhos do homem saírem um mínimo do ponto fixo no teto que olhava e seguirem em sua direção, mas o próximo grupo entrou muito rápido e o homem voltou ao estado fingir-de-morto que todos eles estavam. Era um grupo de orientais turistas, e falavam muito em uma língua que nenhum deles entendia.

Qual era o nome daquele cara do seu lado? Era o que menos conhecia dali… Era um poeta ou coisa assim, pelo que ele se lembrava.

“Pshht. Ei. Teller”, disse o Pintor, depois que o grupo de orientais saiu.

“O que foi?”, respondeu ele, muito baixo.

O salão ficava vazio entre um e outro grupo, e o Pintor percebeu que, se fosse fazer algo, teria que ser naquele intervalo.

“Você tem um cigarro?”, sussurrou o pintor.

“Você es…” Outro grupo entrou. Falavam baixo e só observavam os cinco corpos quase imóveis ali abaixo deles, os olhos de todos no teto, as cores escuras e estranhas os envolvendo. Esse era um grupo de magros e quietos; não tiravam fotos. Deviam ser críticos. Malditos críticos. Saíram quase sem falar quando o homem disse que o tempo tinha acabado.

“…Tá maluco?” respondeu Teller ”Isso acaba com a proposta!”

Ele falava muito baixo, mas a água criava um efeito de ampliar o som para eles, por estarem todos parcialmente submersos.

“Eu sei, calma, e…”

Outro grupo.

O Pintor conseguia aguentar aquela água. Aquilo era pouco para ele; era obstinado. Talvez teimoso. A tinta que os envolvia também não o preocupava. Quando teve essa ideia, junto com Carlos (que estava do outro lado da piscina) tinham lhe dito que isso faria mal à sua pele e tudo mais, mas “qualquer preço é pequeno quanto pago pela arte”, ele disse. O grande número deles ali também ajudava a convencê-lo de que aquilo era real e autêntico, incrível. Sua contribuição ao nebuloso campo das manifestações artísticas que envolviam os autores como parte da obra. Estava um tanto perturbado com a ideia de que nunca veria aquilo como os espectadores estavam (já que aquilo não era o tipo de coisa que se fotografava, não), mas até aquilo não o incomodava muito.

Pensou que pensara em tudo; mas esquecera de algo que agora o fazia suar frio enquanto boiava.

“…U não vou foder tudo. Você tem?”

“Não.”

“Como não?” sussurrou o pintor. “Você é um artista. Todo o artista fuma. Eu to vendo o maço no bolso da sua camisa daqui.”

“Eu…” grupo. Muitas fotos. Cinco minutos depois Teller continuou–”…Só tenho a caixa. Assim eu seguro a vontade. Parece que eles tão aqui comigo.”

“Filho da puta!”

“Acho que a Miranda tem.”

Grupo.

Miranda era a única mulher entre os cinco, e estava no meio deles. Houvera uma grande discussão entre elas com o simbolismo que ela teria na obra, estando no meio de quatro homens entre a tela pintada à lá Pollock na água da piscina, mas no final eles usaram o velho truque dos artistas: fizeram sem motivo, e quando alguém sugerisse um bom eles o acatariam de imediato, com aquele sorriso e o “é claro, pensamos nisso desde o início.”

“Psshht. Miranda.” disse o Pintor assim que o grupo se foi. Esperava que, por causa daquele efeito estranho da água, ela ouviria mais facilmente.

“Cala a boca, Gales.” disse a Pintora.

“Me escuta. Você tem um cigarro?”

“Eu tava ouvindo.”

“E tem?”

“Eu…”

Grupo.

Gales não fumaria o cigarro, era óbvio. Aquilo estava totalmente fora de questão, acabaria com a apresentação deles. Mesmo esse pensamento não conseguiu afastar a vontade crescente de fumar. Não conseguia se lembrar de um dia em que havia passado mais de uma hora sem um cigarro na boca desde seus dezesseis anos.

Depois da primeira hora sua vontade quebrou sua lógica com o grande martelo do vício. Precisava de um cigarro. Nem que fosse só para sentir na boca. Precisava.

“Tenho, mas mal tenho como pegar. Vai se foder. Eu falei que você ia foder tudo.”

“Porra Miranda, me ajuda. Eu não quero estragar isso aqui.”

“Você nunca quer.”

Carlos, na outra ponta, não conseguiu segurar uma careta.

“O que…” começou o pintor.

Grupo.

“…Você quis dizer com isso? disse Gales.

“Você sabe. É como naquela vez da viagem pros meus pais.”

No outro lado, o quarto homem sussurrou para Carlos.

“Cara que porra é essa?”

“Eles têm história.”

“Você tinha que…” disse o Pintor.

Grupo. Aplaudiram os artistas, impressionados com a total concentração deles. Um homem tentou contar uma piada para tirá-los do sério, mas, além de falar, foi muito repreendido por todos. Era um lugar de silêncio e apreciação, olhe para os artistas, como são sérios e compenetrados.

“…Falar disso agora? Puta que pariu!”

“Puta que pariu digo eu, seu viciado maldito!”

“Pessoal, isso aqui não é hora pra uma dis…”

Grupo entrou em completo silêncio, e assim permaneceu.

“…scussão de relacionamento.” disse Fontes, o quarto, sem ver a cara de pânico de Carlos.

“Não tem relacionamento!” disse Miranda, fúria feminina encarnada.

“Deixa pra depois. Sério, pessoal, pelo amor de Deus alguém tem um cigarro? Eu nem vou fumar ele de verdade, vou só lamber.”

“Car…”

Grupo.

“…ramba, Gales, eu achei que você era um profissional. Vai tomar no cu e fica quieto.”

“Vai se foder, Fontes, minha merda pinta melhor que você” disse Miranda, para a surpresa de Fontes.

“Porra, você não tava xingando ele até um segundo atrás?”

Grupo.

“Eu…”

“Pessoal, porra, cigarro! Se você vai me defender pode me jogar um cigarro pra eu lamber e todo mundo sai feliz.” interrompeu o pintor.

“Eu não saio feliz depois disso.” disse Miranda.

“Foda-se. Miranda, caralho, ajuda…” disse Carlos.

Grupo.

“Ele.”

“Eu não, ele que se foda.”

“Vai lá, por favor.” continuou Carlos. ”Pensa não nele, mas como todos tão fodidos se isso der errado.

“…Ok, ok.”

“E depois já passa um pra mim.” disse Carlos.

“O…”

Grupo.

“O que?!” disse Miranda, quase falando num tom de voz normal ”Porra, nenhum de vocês aguenta duas horinhas sem uma merda dessas na boca?”

“Eu nem fumo.” disse Fontes.

“E por isso que não pinta nada.” disse Gales.

“Como é?”

Os três tiveram que segurar o riso enquanto o próximo grupo tirava suas fotos mal tiradas.

“Tá, porra, calem a boca. Passa um cigarro pra ele logo, Miranda, eu aguento sem.”

“Ok, ok. Mas quando eu sair daqui vocês todos tão fodidos.”

Como eles estavam quase perfeitamente estáticos na piscina, boiando com a barriga para cima, o movimento do braço de Miranda criou uma perturbação que, por mais que mínima para eles, foi como acordar de um sono profundo com um terremoto.

Um dos do próximo grupo ficou até o último segundo encarando Miranda, tentando entender se a expressão que vira nela por uma fração de segundo fora real ou imaginação.

“O que foi?” perguntou Carlos.

“Eu derrubei do bolso. Merda.”

“O que!?”disse Gales. ”Puta que pariu sua inútil! Agora vai boiar e foder tudo!”

“Afundou, caramba! Você não lembra que eu guardo o isqueiro junto com a carteira? Você…”

Grupo.

“…Não lembra de porra nenhuma, né Gales?”

“Puta que pariu, DR de novo…” disse Fontes.

“Puta que pariu, falei pra não chamar ela.” disse Gales.

“Puta que pariu, você não me disse que tava num desses dias, Miranda…” disse Carlos.

O próximo grupo entrou. Se estivessem ali na apresentação anterior teriam percebido a súbida e incrível mudança na cor do rosto da mulher no centro, que fora da pálida porcelana ao vivo rubro, mas nenhum deles notou.

Ao invés disso, todos, quase ao mesmo tempo, tiraram um pequeno objeto do bolso e levaram em direção ao rosto. Todos os cinco artistas na piscina conseguiram identificar exatamente o que era, mesmo com só Gales encarando diretamente um dos cigarros.

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“…E é por isso que eu não vou nessas porras.” disse o velho, acendendo o cigarro.

“O que?” disse outro, se sentando na mesa suja do bar, depois de voltar do banheiro.

“Essas porra de arte moderna. Semana passada rolou uma coisa muito fodida, duns caras numa piscina com tinta, uma merda assim…” recomeçou o primeiro, bebendo sua cerveja, enquanto os outros o escutavam de novo.

“…E aí? Eles morreram envenenados?”

“Não, cacete. Entrou um grupo de pessoas lá e, dois segundos depois, quando os organizadores entraram, tavam metendo porrada.”

“Como? Em quem?”

“Sei lá, uns nos outros, nos caras, não sei. Ouvi que tinha uma mulher enfiando um maço de cigarros na boca do cara. Foi uma merda. Foram todos presos.”

“Que merda. Ainda bem que não vou nessas porras.”

“Pois é.”

Os dois viraram mais uma cerveja e voltaram com o papo de futebol.


Esse é outra Writing Prompt, que foi, na época, um baita desafio. Agora que você leu fica fácil, mas imagine você sendo desafiado a escrever uma história onde “um pintor está numa piscina e precisa de um cigarro para lamber”. Acho que, pelo desafio, é um dos meus textos preferidos dessa época.