O Temor de Todos Os Homens

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A humanidade, em sua busca infindável pelo conhecimento e poder, descobriu várias coisas magníficas. A eletricidade, a medicina, o fogo, a água encanada. Para todas essas maravilhas, entretanto, há uma criação desvirtuada, um aborto científico que vai diretamente contra o progresso e crescimento do ser humano. As grandes usinas termoelétricas, as manipulações genéticas, a bomba atômica. E, certamente pior que todos esses outros, uma real abominação da natureza que nunca deveria existir, criado pela tolice e arrogância do ser humano, aquilo que os dois homens encontraram naquela tarde ordinária de quarta-feira.

O banheiro de dois mictórios.

Há três regras não verbalizadas que ditam o comportamento dos homens quando o assunto é mictório. Não se sabe quem foi o grande sábio que as percebeu pela primeira vez, mas num estágio avançado da sociedade todos os homens as conhecem.

3 – Nunca diga nada.

2 – Nunca olhe para os lados.

E a primeira, não só por qualquer coincidência organizacional, mas por ser realmente a mais importante:

1- SEMPRE mantenha um mictório de distância.

O curioso sobre o ser humano é que ele não percebe o quanto essas regras são importantes. O leitor desavisado provavelmente está pensando que isto é uma grande bobagem. Uma tolice da masculinidade frágil.

Foi isso que os dois homens, que entraram no banheiro praticamente ao mesmo tempo, cheios de orgulho, pensaram. Ambos dirigiram-se ao mictório mais próximo e, sem cerimônia, com uma confiança inabalável, invejável, tiraram os membros para fora.

E assim ficaram.

As três regras do mictório normalmente não se aplicam em duas situações muito restritas: quando os envolvidos estão embriagados ou quando os homens atingiram um nível de iluminação social que os libertou desses grandes postulados.

Nenhum dos dois se moveu por um longo tempo. Eram incapazes de urinar.

– Eu consigo. É só ignorar a presença dele.

Esse primeiro pensamento tolo logo foi descartado. Um deles talvez tenha conseguido derramar algumas gotas sobre a cerâmica, o que só piorou sua vontade.

– É impossível. Preciso esperar esse cara ir embora para conseguir.

– Ele vai perceber que eu não estou conseguindo.

– Não vai, ninguém presta atenção no cara do lado.

– A qualquer momento ele vai.

– Eu podia desistir, não podia? Ir embora. Lavar as mãos e fingir que nada de errado está acontecendo. Todo mundo já pensou nisso.  Ele não vai notar, eu procuro outro banheiro.

– É claro que ele vai notar. Depois de todo esse tempo sem fazer nada, ele deve estar prestando atenção. Que tipo de idiota fica na frente do mictório e não mija? Ele dele achar que eu sou um fracasso.

– Que situação ridícula. É só outro cara do meu lado. Eu consigo mijar. É só se concentrar. Lembrar daqueles artigos sobre meditação que li na internet semana passada. Focar nos azulejos.

– É impossível. Não vou conseguir. Preciso esperar ele sair.

Nenhum dos dois sabia, mas aquela era uma ocasião especialmente rara. Por mais que os banheiros de dois mictórios sejam em tal nível terríveis, na maioria das vezes dois homens entram um depois do outro, e o segundo, percebendo intuitivamente o problema que está se metendo, lava as mãos e procura outro banheiro.

Os dois entraram exatamente ao mesmo tempo. Não tiveram escolha.

Poucos seres humanos já viveram uma batalha de emoções e vontades quanto os dois homens. O orgulho gritava na mente, mantendo-os no lugar, apoiado pela vergonha. A dor puxava-os para fora, apoiado pelo senso de ridículo, o bom senso e a lógica. Os três últimos, é claro, não tinham chance real. Nunca foram as forças motivadoras da humanidade, diferentes dos primeiros. A preguiça estava cansada demais para entrar na batalha.

Talvez eles saíssem vivos dali. Depois de algumas horas (dias?) a iluminação social viria, e ambos urinariam ao mesmo tempo, jogando sua humanidade tola pelo ralo e levantando-se homens superiores. Apertariam as mãos (depois de lavadas), reconhecendo o companheirismo e importância um do outro naquela jornada de autodescoberta e sabedoria, e sairiam para espalhar a palavra aos seres humanos ainda presos na ignorância.

Se fosse assim, essa possibilidade realmente verdadeira, os banheiros de dois mictórios seriam uma coisa boa, até. Terríveis por criar tanto sofrimento aos homens, mas bons no sentido de que o sofrimento tinha um propósito, era uma jornada árdua até a grande recompensa do conhecimento. Mas, pelo histórico, isso era difícil de acontecer.

– Meu Deus. Eu vou morrer aqui.

A verdade veio aos dois quase ao mesmo tempo, ambos imóveis em frente ao mictório, o membro nas mãos, e nenhum dos dois esboçou reação nenhuma. Talvez uma lágrima tenha relutado em cair, escorregar pela face e bater nas mãos ocupadas deles, mas podiam usar a desculpa do ar seco, do tempo exagerado com os olhos abertos.

Dali era só questão de tempo. Primeiro a bexiga iria estourar, espalhando uréia e ácidos no corpo. Depois a fome ia cair sobre eles, impossível de saciar. Por fim, não seria o corpo a falhar primeiro; a mente, exausta com aquele nível de estresse, desistiria da vida, e os dois seriam levados por um tranquilo aneurisma espontâneo.

Era uma situação sem saída. A segunda regra os impedia de procurar por soluções ao entorno, a terceira de gritar por ajuda. Insolúvel como óleo na água. Talvez fosse hora de começar a fazer paz com a situação, conformar-se. Fora uma vida boa, cheia de alegrias e tristezas, de trabalho, pessoas, amores, decepções… Podia ser um fim trágico, um acidente de percurso sem muito motivo, mas não era isso que importava no final, era? A jornada é o que importa. Reviveram as próprias vidas, lembrando-se de todos os banheiros que viram, de todas as vezes que sem pensar seguiram as três regras, nunca imaginando que uma situação dessas podia acarretar na última consequência. A sociedade dos homens realmente vive em seu ápice, mas não é capaz de controlar as forças mais intesas das estruturas mentais criadas por milênos, soldadas entre os neurônios de cada homem com a força de…

– Ô! Vocês já terminaram aí?

Os dois homens se viraram por reflexo. A mulher da limpeza estava na porta.

Urinaram, lavaram as mãos e foram embora.


Um dos últimos textos curtos que escrevi, originalmente tinha o título menos chamativo de “inevitável”. Surgido bem onde você tá imaginando mesmo, mas num lugar que, para a minha sorte (ou azar?) tinha mais de dois mictórios.

E não se preocupe, eu lavei as mãos antes de escrever.

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