Curtas – Ou Coisa Parecida ~ por Thiago Loriggio http://oucoisaparecida.com.br Sun, 30 Jun 2019 22:35:24 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.8.24 http://oucoisaparecida.com.br/wp-content/uploads/2018/03/cropped-pencil-152-224734-32x32.png Curtas – Ou Coisa Parecida ~ por Thiago Loriggio http://oucoisaparecida.com.br 32 32 O Homem Dos Olhos Opacos http://oucoisaparecida.com.br/o-homem-dos-olhos-opacos/ http://oucoisaparecida.com.br/o-homem-dos-olhos-opacos/#respond Sun, 13 May 2018 05:01:52 +0000 http://oucoisaparecida.com.br/?p=198 leia mais]]>

Caminhava a passos lentos pela rua. Prestava atenção no tempo, nas nuvens ralas que se arrastavam pelo céu claro. Nos pequenos pássaros que cantavam numa praça próxima. No seu próprio andar.

Os passantes notavam algo estranho em sua expressão, e ele notava a curiosidade dos mesmos. Eles viam no rosto do homem o nada. Uma expressão séria, não tão séria a ponto de ser confundida com tristeza, mas ao mesmo tempo tão séria que era quase indiferente. E era isso que a maioria das pessoas pensava: indiferença. Era só um homem pensando, fora do momento. Alheio àquilo tudo.

Alguns viam que não era bem esse o caso. Aqueles que encaravam os olhos do homem viam algo a mais… Me desculpe, não são bem essas as palavras. Viam a ausência. Seus olhos eram de um opaco estranho, indescritível. Não havia nada por trás deles. Não havia nada por trás dele.

Era só um homem indo para casa. Se fosse um mínimo diferente do que era, riria ao perceber que alguns passantes achavam que estava fora dali, perdido em pensamento. Era o completo contrário. Estava mais atento que qualquer passante ordinário. Seus olhos opacos viam tudo. Mas só viam a luz; nada mais. Não havia reflexão. As coisas eram o que eram, frias e reais.

Não havia nada por trás de nada. Era tudo simples e morto.

Quase tão simples e morto quanto seus próprios olhos opacos.

Carregava uma maleta quase vazia, balançando a cada passo, contendo papéis e outros pequenos objetos. Porém, ali, só haviam duas coisas que realmente importavam: os dois momentos do dia. Eram as únicas duas coisas que ele gostaria de levar a salvo para casa. Eram parte dele.

E então houve o inesperado. Fugindo da aglomeração, o homem inconscientemente virou uma esquina no intuito de tomar outro caminho para casa. E se deparou com um lugar familiar.

Familiar demais.

Do opaco dos olhos do homem veio um brilho escuro, e a expressão tomou seu rosto. Lembrança. Felicidade. Saudade. Dor.

Sua face voltou ao normal em uma fração de segundo. O brilho nos olhos, entretanto, continuava lá. E isso mudava tudo no homem. Era como outra pessoa, que não se podia confundir com o homem de passos lentos e expressão pétrea que habitava aquele corpo até poucos instantes. É um tanto difícil de explicar.

O seu passo aumentou. Entrou numa ruela no sentido oposto ao qual estava indo, e logo percebeu seu erro. “E veja, a emoção já me faz cometer pequenos erros”.

Havia um banco. Ele se sentou.

Abriu a maleta furiosamente, com mãos rápidas e trêmulas, e não teve dificuldade em achar um bolo de folhas em branco e um lápis bem apontado. Colocou o bolo de folhas em cima da maleta, no colo, e pôs-se a escrever. Não houve pausa, reflexão sobre as palavras que estavam por vir. Ele simplesmente as deixavou fluir.

Estranhamente nenhum passante notou a estranheza daquilo tudo. Só ignoravam o homem, que escrevia violentamente.

Escreveu por quase uma hora. Não havia descanso para seu lápis, a não ser nas duas vezes que teve que parar para apontá-lo. Não lia o que escrevia. Quando uma folha acabava, colocava-a atrás do bolo e continuava. Não escrevia nos versos. Talvez escrevesse em versos. Simplesmente escrevia. Punha tudo aquilo no papel. Aprisionava aquele pedaço de si mesmo.

E por fim terminou. Pegou todas as folhas escritas, hesitou, e rabiscou um título na primeira. Tirou um clipe do bolso da camisa e prendeu-as juntas. Fechou os olhos e suspirou.

E abriu os olhos novamente. Opacos como a pedra.

#

O apartamento não tinha cheiro algum. Não havia, também, som que o identificasse. Era somente um pequeno lar. Não haviam fotos espalhadas pelas paredes e pela mobília fosca, nem pequenos traços de personalidade ou de memórias. Era tudo prático, arrumado… Morto. Todos os objetos dispostos em lugares pensados, como numa exposição. Intocado.

O homem logo entrou no quarto e sentou-se na cadeira da escrivaninha. Colocou sua pasta em cima da mesa, do lado da lustrosa máquina de escrever, e tirou três pequenos bolos de papel da pasta. Não olhou para eles, nem leu seus títulos. Ele achava que ler o que havia acabado de escrever tornava o processo de livrar-se de tudo mais difícil.

Abriu a gaveta inferior do arquivo em baixo da mesa. Haviam diversas pastas, inúmeras pastas, todas com bolos de papel… E ele passou os olhos mortos pelas palavras em cima de cada pasta: Felicidade, Tristeza. Dor, Saudade. Indiferença. Impotência. Decepção. Raiva, Ódio. Tudo impecável, as folhas em ordem. Pensou por um instante, a expressão ainda morta, e colocou cada uma dos três bolos de folhas em pastas diferentes. Mecânico. Automático. Impensado.

Olhou no relógio, e se surpreendeu ao perceber o quão tarde era. O dia seguinte era… O dia seguinte. Precisava acordar cedo. Precisava acordar e viver. Era tudo que tinha.

Mas antes precisava ler, se lembrar. Quando, há muito tempo atrás, o homem decidira que iria viver desta forma, prometeu a si mesmo que não se esqueceria das emoções. Se, algum dia esquecesse por completo, perderia sua humanidade.

Ultimamente os seus textos andavam escassos. Lembrava-se do dia em que escrevia o dia inteiro, quase sem pausa. Cada pequena coisa despertava emoção nele. E precisava livrar-se dela.

Precisava contê-la com suas palavras. Assim a emoção estaria para sempre ali, acessível quando ele quisesse, mas sob controle. O homem nunca seria regido por suas emoções. E também não as reprimiria. Escrevia todas elas, e elas se esvaiam…

As palavras que usava não eram relacionadas ao que sentia. Não, não, era algo indireto.

Escrevia praticamente de tudo. Haviam poemas, frases soltas. Crônicas, narrativas…Mas tudo isso não importava, na realidade. Havia emoção nas palavras, quaisquer que fossem elas. E isso era tudo o que elas precisavam conter.

Depois de passar os dedos por entre as pastas, puxou algumas folhas, juntas por um grampo, e começou a ler. Puxara as folhas da pasta intitulada “Felicidade”. Eram só três folhas, mas estas estavam escritas tanto na frente como verso.

E o brilho voltou aos olhos do homem. E ele sorriu. Um sorriso autêntico, feliz. Leu vagarosamente, aproveitando todos os momentos daquilo… E ao final da terceira folha estava rindo baixinho. Pareceu uma criança, tão feliz em sua inocência. Tão cheio daquela felicidade pura, incorruptível.

Guardou a folha na pasta, novamente, ainda sorrindo… E a felicidade foi morrendo dentro de si. Encarava a gaveta aberta do arquivo com a expressão pétrea, imutável. Sob controle.

E então, só então, olhou para a gaveta de cima. Nesta, além de uma fechadura, havia um grosso cadeado de bronze. Sentiu as chaves pendendo em volta do pescoço, e houve dúvida.

Não me entenda mal, era uma dúvida puramente lógica. Não havia emoção alguma. Pensava nos números, nas reações passadas…

Naquela gaveta estavam guardadas suas emoções mais preciosas. Não eram simplesmente coisas do cotidiano; eram as emoções que tinham a maior influência sobre ele, e, por conta disso, eram as mais perigosas. Toda a vez, até então, que tentara senti-las tivera que escrever novamente só para livrar-se do vestígio daquelas emoções. Eram os grandes momentos simples da sua vida, alguns nem tão simples, todos presos eternamente por palavras.

Suas palavras eram fortes, não o leve a mal… Mas ele não tinha certeza se era. Mesmo presas por entre as grossas barras de ferro verbal, achava que o que elas tinham a lhe dizer já seriam o suficiente para lhe causar emoção. Não tinha medo disso, veja bem, só achava que poderia acontecer. Seu medo estava todo bem guardado, numa pasta escura no fundo da gaveta de baixo.

Estava pronto. Concluiu isso usando toda a sua lógica. Já haviam se passado meses desde que fracassara pela última vez. Tirou a corrente de volta do pescoço e abriu a gaveta de cima.

Estava bem menos cheia que a de baixo. Havia apenas meia dúzia de pastas, todas sem título, e alguns papéis soltos no fundo.

Se o homem sentisse emoção como qualquer um de nós, teria ficado confiante com o fato de que sua mão não tremeu quando tocou uma das folhas do fundo, e teria se orgulhado de si mesmo.

Teria se lembrado da última vez que lera aquela folha em específico, e se inundado com a lembrança quase precisa da sensação. Mas nada disso aconteceu. Apenas pegou a folha, e leu seu título:

“Ilusão”.

Eram só algumas frases soltas, três ou quatro pequenos parágrafos. Para o leitor desatento tudo aquilo certamente soaria só como uma divagação, uma tentativa pífia de poema, qualquer coisa nesse nível. O leitor um pouco mais atento perceberia o peso naquelas palavras todas, mas não conseguiria distinguir muito bem, não conseguiria ligar os pontos…

O homem sem emoção era o mais atento dos leitores. E entre a torrente de emoções que se seguiram, vieram algumas que não deveriam estar lá. Decepção, medo, angústia. Ele não estava pronto. Não conseguiria se livrar daquela sensação, fundo no peito, da mesma forma que se livrara da felicidade de antes. Subestimara as suas palavras do passado.

Guardou a folha de volta no arquivo, mas desta vez pelo menos fora capaz de guardá-la na pasta. Suas mãos tremiam de leve. Seus olhos pareciam prestes a explodir. Sua expressão continuava séria, mas… Por mais semelhante que era da mesma expressão que usava no dia-a-dia, havia um peso tão grande nela que não se podia descrever.

O homem sem emoção escreveu, uma vez, um texto sobre orgulho, por um dia ter sentido orgulho de não usar máscara alguma. De ser exatamente o que se via. Sua expressão do dia-a-dia era perturbadora como o vazio silencioso e morto que havia dentro de si. Não era feliz, não era triste. Mas era um espelho perfeito de como se sentia. De como não sentia.

Não era exceção agora. Artistas morreriam para conseguir capturar toda a tristeza daquela face em uma tela. Mas ninguém jamais veria aquilo. Jamais.

E então o homem dos olhos opacos fez o que fazia de melhor. Escreveu. Pôs os dedos na máquina lustrosa e digitou ferozmente, com os sons do aparelho rugindo pelo cômodo como uma metralhadora. Não seria tão forte quanto a folha solitária que lera, mas conteria os resquícios daquela emoção. Precisava conter.

O que seria de si se não contivessem? Não conseguiria viver assim. Não com aquilo no peito. Não consigo mesmo.

Emoção já reinara sua vida, e os textos que falam sobre as memórias desse tempo não são todos agradáveis. Não queria voltar a ser como era. Precisava escrever. O homem não via isso como fugir, não. Era mais nobre. As emoções ficavam lá, e ele as lia. As sentia. Mais intensamente do que qualquer memória poderia ser. Suas palavras eram precisas.

Todas emoções que tivera por um longo tempo. Todas presas no tempo, imaculadas.

#

Os olhos do homem sem emoção se abriram com o som do despertador. Havia brilho neles, diferente de todos os brilhos que haviam surgido na véspera.

É claro que ele se lembrou dos três textos que escreveu. Lembrou das palavras de forma quase precisa, naquele momento inconsciente do acordar.Mas não sentiu emoção alguma ao fazê-lo.

Claro que se lembrou das palavras duras e carregadas da mais autêntica emoção que lera no dia anterior, e das várias páginas que escrevera para conter os sentimentos que surgiram com a leitura. Lembrou-se de como aquilo havia o dominado, e como conseguira, com muito esforço, tirar aquilo de si. Mas isso, também, não o fez sentir nada.

O que trouxe o brilho aos seus olhos era algo diferente, a única coisa que seu plano perfeito de vida não conseguia controlar. A expressão máxima do poder da sua mente agindo sobre ele.

Alguns segundos depois ele se levantaria, e provavelmente não escreveria. Mas por ora estava tomado por estranhas emoções, estranhas e incontroláveis.

Porque você vê, o homem sem emoção sonhava. E nos sonhos não há como controlar a própria mente, nem o que ela vê e sente.


Nossa. Esse texto é velho. Tive que fazer um esforço pra não reeditar todo ele, tirar os advérbios, trocar as frases, deixar mais concreto, mais direto, mas incisivo… É engraçado como o nosso senso do que é bom vai se alterando com o tempo. Engraçado principalmente por escrita ser, essencialmente, algo subjetivo. Fica difícil manter uma opinião fixa sobre o que é bom e o que é ruim, e é muito fácil se perder em espirais de “meu deus será que eu só piorei, será que nessa época que eu realmente sabia o que eu tava fazendo”… Acho que essa é uma das horas que o escritor tem que ter um pouco de convicção na intuição dele. E a minha intuição diz que esse texto aí em cima tem tanto a melhorar…

Mas ainda é um texto importante pra mim. Junto com o Estacionamento, é um dos primeiros textos que escrevi “sem precisar”. E, sobre a qualidade dele, acho é válida uma citação do Luís Fernando Veríssimo, de seu livro “Os Espiões”:

O Dubin dizia que a má literatura é a literatura em estado puro, intocada por distrações como estilo, invenção, graça ou significado, reduzida apenas ao ímpeto de escrever, à magnífica compulsão.

Um brinde à má literatura, eu suponho.

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Lá pelo minuto noventa e cinco ele falou.

“Pshht. Ei.”

Logo antes de piscar encarou o homem ao seu lado, e o volume em seu bolso. Já vinha fazendo isso há pouco mais de vinte minutos, depois de aprender que assim conseguia muito provavelmente manter todos acreditando que olhava fixamente para cima.

Viu os olhos do homem saírem um mínimo do ponto fixo no teto que olhava e seguirem em sua direção, mas o próximo grupo entrou muito rápido e o homem voltou ao estado fingir-de-morto que todos eles estavam. Era um grupo de orientais turistas, e falavam muito em uma língua que nenhum deles entendia.

Qual era o nome daquele cara do seu lado? Era o que menos conhecia dali… Era um poeta ou coisa assim, pelo que ele se lembrava.

“Pshht. Ei. Teller”, disse o Pintor, depois que o grupo de orientais saiu.

“O que foi?”, respondeu ele, muito baixo.

O salão ficava vazio entre um e outro grupo, e o Pintor percebeu que, se fosse fazer algo, teria que ser naquele intervalo.

“Você tem um cigarro?”, sussurrou o pintor.

“Você es…” Outro grupo entrou. Falavam baixo e só observavam os cinco corpos quase imóveis ali abaixo deles, os olhos de todos no teto, as cores escuras e estranhas os envolvendo. Esse era um grupo de magros e quietos; não tiravam fotos. Deviam ser críticos. Malditos críticos. Saíram quase sem falar quando o homem disse que o tempo tinha acabado.

“…Tá maluco?” respondeu Teller ”Isso acaba com a proposta!”

Ele falava muito baixo, mas a água criava um efeito de ampliar o som para eles, por estarem todos parcialmente submersos.

“Eu sei, calma, e…”

Outro grupo.

O Pintor conseguia aguentar aquela água. Aquilo era pouco para ele; era obstinado. Talvez teimoso. A tinta que os envolvia também não o preocupava. Quando teve essa ideia, junto com Carlos (que estava do outro lado da piscina) tinham lhe dito que isso faria mal à sua pele e tudo mais, mas “qualquer preço é pequeno quanto pago pela arte”, ele disse. O grande número deles ali também ajudava a convencê-lo de que aquilo era real e autêntico, incrível. Sua contribuição ao nebuloso campo das manifestações artísticas que envolviam os autores como parte da obra. Estava um tanto perturbado com a ideia de que nunca veria aquilo como os espectadores estavam (já que aquilo não era o tipo de coisa que se fotografava, não), mas até aquilo não o incomodava muito.

Pensou que pensara em tudo; mas esquecera de algo que agora o fazia suar frio enquanto boiava.

“…U não vou foder tudo. Você tem?”

“Não.”

“Como não?” sussurrou o pintor. “Você é um artista. Todo o artista fuma. Eu to vendo o maço no bolso da sua camisa daqui.”

“Eu…” grupo. Muitas fotos. Cinco minutos depois Teller continuou–”…Só tenho a caixa. Assim eu seguro a vontade. Parece que eles tão aqui comigo.”

“Filho da puta!”

“Acho que a Miranda tem.”

Grupo.

Miranda era a única mulher entre os cinco, e estava no meio deles. Houvera uma grande discussão entre elas com o simbolismo que ela teria na obra, estando no meio de quatro homens entre a tela pintada à lá Pollock na água da piscina, mas no final eles usaram o velho truque dos artistas: fizeram sem motivo, e quando alguém sugerisse um bom eles o acatariam de imediato, com aquele sorriso e o “é claro, pensamos nisso desde o início.”

“Psshht. Miranda.” disse o Pintor assim que o grupo se foi. Esperava que, por causa daquele efeito estranho da água, ela ouviria mais facilmente.

“Cala a boca, Gales.” disse a Pintora.

“Me escuta. Você tem um cigarro?”

“Eu tava ouvindo.”

“E tem?”

“Eu…”

Grupo.

Gales não fumaria o cigarro, era óbvio. Aquilo estava totalmente fora de questão, acabaria com a apresentação deles. Mesmo esse pensamento não conseguiu afastar a vontade crescente de fumar. Não conseguia se lembrar de um dia em que havia passado mais de uma hora sem um cigarro na boca desde seus dezesseis anos.

Depois da primeira hora sua vontade quebrou sua lógica com o grande martelo do vício. Precisava de um cigarro. Nem que fosse só para sentir na boca. Precisava.

“Tenho, mas mal tenho como pegar. Vai se foder. Eu falei que você ia foder tudo.”

“Porra Miranda, me ajuda. Eu não quero estragar isso aqui.”

“Você nunca quer.”

Carlos, na outra ponta, não conseguiu segurar uma careta.

“O que…” começou o pintor.

Grupo.

“…Você quis dizer com isso? disse Gales.

“Você sabe. É como naquela vez da viagem pros meus pais.”

No outro lado, o quarto homem sussurrou para Carlos.

“Cara que porra é essa?”

“Eles têm história.”

“Você tinha que…” disse o Pintor.

Grupo. Aplaudiram os artistas, impressionados com a total concentração deles. Um homem tentou contar uma piada para tirá-los do sério, mas, além de falar, foi muito repreendido por todos. Era um lugar de silêncio e apreciação, olhe para os artistas, como são sérios e compenetrados.

“…Falar disso agora? Puta que pariu!”

“Puta que pariu digo eu, seu viciado maldito!”

“Pessoal, isso aqui não é hora pra uma dis…”

Grupo entrou em completo silêncio, e assim permaneceu.

“…scussão de relacionamento.” disse Fontes, o quarto, sem ver a cara de pânico de Carlos.

“Não tem relacionamento!” disse Miranda, fúria feminina encarnada.

“Deixa pra depois. Sério, pessoal, pelo amor de Deus alguém tem um cigarro? Eu nem vou fumar ele de verdade, vou só lamber.”

“Car…”

Grupo.

“…ramba, Gales, eu achei que você era um profissional. Vai tomar no cu e fica quieto.”

“Vai se foder, Fontes, minha merda pinta melhor que você” disse Miranda, para a surpresa de Fontes.

“Porra, você não tava xingando ele até um segundo atrás?”

Grupo.

“Eu…”

“Pessoal, porra, cigarro! Se você vai me defender pode me jogar um cigarro pra eu lamber e todo mundo sai feliz.” interrompeu o pintor.

“Eu não saio feliz depois disso.” disse Miranda.

“Foda-se. Miranda, caralho, ajuda…” disse Carlos.

Grupo.

“Ele.”

“Eu não, ele que se foda.”

“Vai lá, por favor.” continuou Carlos. ”Pensa não nele, mas como todos tão fodidos se isso der errado.

“…Ok, ok.”

“E depois já passa um pra mim.” disse Carlos.

“O…”

Grupo.

“O que?!” disse Miranda, quase falando num tom de voz normal ”Porra, nenhum de vocês aguenta duas horinhas sem uma merda dessas na boca?”

“Eu nem fumo.” disse Fontes.

“E por isso que não pinta nada.” disse Gales.

“Como é?”

Os três tiveram que segurar o riso enquanto o próximo grupo tirava suas fotos mal tiradas.

“Tá, porra, calem a boca. Passa um cigarro pra ele logo, Miranda, eu aguento sem.”

“Ok, ok. Mas quando eu sair daqui vocês todos tão fodidos.”

Como eles estavam quase perfeitamente estáticos na piscina, boiando com a barriga para cima, o movimento do braço de Miranda criou uma perturbação que, por mais que mínima para eles, foi como acordar de um sono profundo com um terremoto.

Um dos do próximo grupo ficou até o último segundo encarando Miranda, tentando entender se a expressão que vira nela por uma fração de segundo fora real ou imaginação.

“O que foi?” perguntou Carlos.

“Eu derrubei do bolso. Merda.”

“O que!?”disse Gales. ”Puta que pariu sua inútil! Agora vai boiar e foder tudo!”

“Afundou, caramba! Você não lembra que eu guardo o isqueiro junto com a carteira? Você…”

Grupo.

“…Não lembra de porra nenhuma, né Gales?”

“Puta que pariu, DR de novo…” disse Fontes.

“Puta que pariu, falei pra não chamar ela.” disse Gales.

“Puta que pariu, você não me disse que tava num desses dias, Miranda…” disse Carlos.

O próximo grupo entrou. Se estivessem ali na apresentação anterior teriam percebido a súbida e incrível mudança na cor do rosto da mulher no centro, que fora da pálida porcelana ao vivo rubro, mas nenhum deles notou.

Ao invés disso, todos, quase ao mesmo tempo, tiraram um pequeno objeto do bolso e levaram em direção ao rosto. Todos os cinco artistas na piscina conseguiram identificar exatamente o que era, mesmo com só Gales encarando diretamente um dos cigarros.

#

“…E é por isso que eu não vou nessas porras.” disse o velho, acendendo o cigarro.

“O que?” disse outro, se sentando na mesa suja do bar, depois de voltar do banheiro.

“Essas porra de arte moderna. Semana passada rolou uma coisa muito fodida, duns caras numa piscina com tinta, uma merda assim…” recomeçou o primeiro, bebendo sua cerveja, enquanto os outros o escutavam de novo.

“…E aí? Eles morreram envenenados?”

“Não, cacete. Entrou um grupo de pessoas lá e, dois segundos depois, quando os organizadores entraram, tavam metendo porrada.”

“Como? Em quem?”

“Sei lá, uns nos outros, nos caras, não sei. Ouvi que tinha uma mulher enfiando um maço de cigarros na boca do cara. Foi uma merda. Foram todos presos.”

“Que merda. Ainda bem que não vou nessas porras.”

“Pois é.”

Os dois viraram mais uma cerveja e voltaram com o papo de futebol.


Esse é outra Writing Prompt, que foi, na época, um baita desafio. Agora que você leu fica fácil, mas imagine você sendo desafiado a escrever uma história onde “um pintor está numa piscina e precisa de um cigarro para lamber”. Acho que, pelo desafio, é um dos meus textos preferidos dessa época.

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A Adega http://oucoisaparecida.com.br/a-adega/ http://oucoisaparecida.com.br/a-adega/#respond Wed, 26 Jul 2017 23:56:33 +0000 http://oucoisaparecida.com.br/?p=103 leia mais]]>

A fechadura rangeu pela milésima vez, mais fácil do que nunca de se abrir. A chave de fenda mal se moveu, e o grampo precisou de só uma passada, tornada mais suave por causa de toda a água. Houvera um toldo acima, mas depois de uma tempestade especialmente forte ele voou, e agora, naqueles dias, Stevenson ficava mais molhado do que antes. Apressou-se para dentro da casa, todos os seus sons encobertos por um trovão próximo, e fechou a porta.

Por um momento só escutou. Guardou as ferramentas no bolso de trás e puxou cuidadosamente o botão do coldre de couro. Congelado no lugar, nem mais sentia o coração acelerar. Das primeiras vezes achou que seria provável encontrar alguém ali. O marido, encobrindo alguma prova que ele esquecera. Quem sabe o jardineiro, aquele que sumiu. Talvez uma pessoa totalmente nova, que em passos rápidos tentaria sair da casa, e terminaria o tormento do velho policial. Mas, pela milésima vez, ninguém veio, então ele ligou a lanterna e foi em direção à cozinha.

Era uma casa grande, do tempo que as paredes tinham detalhes nas bordas, sempre cheias de quadros. Agora tudo cheirava a mofo. Os móveis estavam cuidadosamente embalados em plástico, pequenas poças se formando por causa das goteiras. O chão de madeira já vira dias melhores, e agora rangia furiosamente, mesmo com os passos contidos do leve policial. A parte de baixo da casa tinha ficado basicamente intacta. Uma mancha ali, um teco da porta arrancado aqui, nada demais. O problema estava na parte de cima, mas Stevenson já passara tanto tempo lá que desistiu. Os legistas também olharam toda a superfície. A resposta tinha que estar em algum outro lugar.

Cruzou a sala de jantar, a sala de estar, os quartos de visita do térreo, a enorme cozinha (muito mais verde do que branca, cada dia pior) e chegou finalmente à despensa. Afastou a porta com a lanterna, segurando a respiração como os anos haviam lhe ensinado. A nova dona da casa nunca pousava os pés lá, e não parecia ansiosa em fazê-lo. Nada havia sido tocado desde o incidente, e isso incluía a montanha de comida estragada cujo cheiro parecia capaz de matar. O policial cruzou a sala num passo apressado, sempre com os ouvidos muito atentos a qualquer rangido diferente do que seus pés provocavam, e desceu a pequena escada espiral que havia no canto. O cômodo de baixo não tinha janelas, então ele permitiu-se puxar um fósforo do bolso e acender a meia dúzia de lamparinas de óleo que iluminavam o lugar.

Era um cômodo pequeno, o chão de terra batida coberto com um tapete rústico, vigas grossas de madeira antiga sustentando o teto baixo, de onde meia dúzia de ganchos segurava as lamparinas. Aparentemente era difícil trazer eletricidade à parte baixa da casa, então o marido nunca deixou de usar as tais lamparinas. O policial tivera que enchê-las algumas vezes, e naquele dia estavam cheias, e o cheiro do fogo e do óleo tornando o ambiente um velho conhecido. A chuva era um sussurro distante, junto com os outros sons da cidade. Havia só uma pequena mesa redonda, duas taças empoeiradas em cima, um par de cadeiras rústicas. Stevenson tomou uma delas, e analisou pela vigésima vez as paredes.

Do norte vinha a escada, descendo rente à terra das paredes, que só através dos degraus era visível. Todos os outros cantos eram cobertos pelo rubro e o marrom. Dezenas de estantes, dez centímetros entre uma e outra, talhadas com o formato perfeito, redondo, das garrafas. Centenas de garrafas. Não. Duas mil trezentas e setenta e três; só  dois espaços vagos.  Espalhavam-se numa beleza matemática, todas quase iguais, cobrindo cada centímetro das paredes. Deitadas como bebês. A maioria não tinha rótulo legível; tinha só marcas de cola, números e papéis que se desmanchavam ao toque. O policial tirara todas elas dali, amontoando-as em enormes pirâmides, mas não havia nenhum segredo nas paredes. Analisou garrafa por garrafa, escrito por escrito, fazendo o líquido avermelhado refletir na luz das lamparinas, mas tudo parecia perfeitamente normal. Procurou algum padrão nos sinais escritos, mas, sem o caderno do registro, não conseguia dizer qual vinho era qual. E o caderno fora queimado no incêndio do quarto de cima.

Stevenson caiu pesadamente sobre uma das cadeiras, jogando a bolsa em cima do tapete, criando uma nuvem de pó. Pegou a primeira garrafa que encontrou, uma com a rolha meio tirada, o rótulo ainda existente, e serviu um pouco no copo plástico que levava consigo.

Aquela era sua rotina de sexta à noite, pós expediente. Nas últimas vezes, com os novos vizinhos, limitava-se a entrar na casa só em dias de chuva, mas nos outros ficava à espreita, observando, pensando. Perdera a conta de quantas vezes já estivera ali, na casa, e até ali, no cômodo baixo do vinho. Era o único cômodo que restava.

A memória ainda era fresca, a única coisa viva na carcaça cansada de um policial velho. Vinte anos atrás, aquela casa. Quatro corpos, incêndio, e uma inocente presa. A mulher era inocente; Stevenson apostaria a vida nisso. Apostou a vida nisso. Via nos olhos dela, na inocência. Tinha só vinte e poucos anos quando foi presa no lugar do marido. Houve julgamento, saiu nos jornais, as fotos tirando o fôlego. Como todos puderam acreditar que aquela criaturinha fez tudo aquilo?  Havia digitais, havia armas, os legistas acharam que tudo batia. Mas os olhos da mulher não batiam. Nunca bateram.

Quando o julgamento de cinco dias finalmente terminou, entraram num consenso de que era ela. A menor e mais nova serial killer com tantas vítimas no mundo. Matava lentamente, jogava numa fossa em outro estado. Eram sempre coisas diferentes, prostitutas, homens ricos, homens pobres, mulheres bonitas, mulheres feias. Até a polícia demorou para encontrar o padrão naquilo, o tipo do corte feito, a forma como sempre sangravam até a morte em um lugar e depois eram levados à outro. Até o dia em que uma das vítimas quase escapou, e houve o incêncio.

O marido estivera no julgamento todo, a expressão desolada, olhos sempre vermelhos de lágrimas. Stevenson observara tudo de perto, cada movimento dele, cada palavra dela. O homem era um mestre das máscaras. Já vira gente assim antes, e já entendia muito bem. Era do tipo perigoso de se conversar, e conseguiu fazer sua mágica no juri todo.

A mulher foi presa, ele escapuliu, e todos ficaram felizes com isso. Mas não Stevenson. Não batia. Era o marido, tinha de ser. Ele era maior, mais forte, diabólico com o olhar. Obviamente sumiu do país um ano depois do julgamento, e nunca mais entrou.

O casal viveu a vida toda naquela casa. Os filhos cresceram ali, e o marido antes deles. Psicopatas não fazem seu ofício de graça, sem deslize. Sempre há algum deslize. Alguma coisa que eles guardam, como um troféu, algum lugar onde eles tiram as máscaras e respiram um pouco, quando não podem fazê-lo com uma pessoa amarrada na mesa.

O marido vivia naquele cômodo, segundo os testemunhos. Adorava seus velhos e valiosos vinhos, tomando algumas taças por dia na solidão do quarto baixo. Tinha que estar naquele cômodo, de alguma forma. Tinha que ser ali.

Stevenson já procurara de todas as formas. Usara um detector de metais no chão e nas paredes, procurou por bilhetes, fotos, qualquer coisa, e não havia nada. Só aqueles litros de vinho, que eventualmente ele tomava para ajudá-lo a pensar. Tinha de ser ali.

Cinco anos depois de presa, o país adotara pena de morte. Os prisioneiros em prisão perpétua foram quase todos condenados à injeção letal ou cadeira elétrica, escolha deles. A mulher preferiu injeção. Stevensou viu-a perder a vida, os olhos fecharem-se, já há anos sem vida. Agora não tinha um motivo maior por fazer aquilo, ir até a casa. Era movido pelo olhar da mulher, a inocência, e pela coceira dentro do cérebro, a voz incansável que dizia algo está errado.

Mesmo depois de todos aqueles anos, continuava dizendo.

…Mas cada vez menos. Stevenson bebeu o resto do terceiro copo, fazendo uma careta, e levantou-se. Apagou as lamparinas e se foi. O velho policial nunca bebera muito vinho. De fato, nos últimos anos, só bebia aquele; gole por gole, terminava a coleção do marido. Quem sabe fosse sua vingança, sua pequena compensação. Quem sabe se ele tivesse tomado mais vinhos na vida teria percebido o gosto de sangue.


Esse é a Writing Prompt clássica: a lista de substantivos. Basicamente eu sorteei um substantivo de uma lista e saiu “Adega”, e esse texto veio daí. Um tanto velho e embolorado, mas eu ainda gosto, é um gênero que explorei pouco.

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O Temor de Todos Os Homens http://oucoisaparecida.com.br/o-temor-de-todos-os-homens/ http://oucoisaparecida.com.br/o-temor-de-todos-os-homens/#respond Wed, 26 Jul 2017 23:53:46 +0000 http://oucoisaparecida.com.br/?p=101 leia mais]]>

A humanidade, em sua busca infindável pelo conhecimento e poder, descobriu várias coisas magníficas. A eletricidade, a medicina, o fogo, a água encanada. Para todas essas maravilhas, entretanto, há uma criação desvirtuada, um aborto científico que vai diretamente contra o progresso e crescimento do ser humano. As grandes usinas termoelétricas, as manipulações genéticas, a bomba atômica. E, certamente pior que todos esses outros, uma real abominação da natureza que nunca deveria existir, criado pela tolice e arrogância do ser humano, aquilo que os dois homens encontraram naquela tarde ordinária de quarta-feira.

O banheiro de dois mictórios.

Há três regras não verbalizadas que ditam o comportamento dos homens quando o assunto é mictório. Não se sabe quem foi o grande sábio que as percebeu pela primeira vez, mas num estágio avançado da sociedade todos os homens as conhecem.

3 – Nunca diga nada.

2 – Nunca olhe para os lados.

E a primeira, não só por qualquer coincidência organizacional, mas por ser realmente a mais importante:

1- SEMPRE mantenha um mictório de distância.

O curioso sobre o ser humano é que ele não percebe o quanto essas regras são importantes. O leitor desavisado provavelmente está pensando que isto é uma grande bobagem. Uma tolice da masculinidade frágil.

Foi isso que os dois homens, que entraram no banheiro praticamente ao mesmo tempo, cheios de orgulho, pensaram. Ambos dirigiram-se ao mictório mais próximo e, sem cerimônia, com uma confiança inabalável, invejável, tiraram os membros para fora.

E assim ficaram.

As três regras do mictório normalmente não se aplicam em duas situações muito restritas: quando os envolvidos estão embriagados ou quando os homens atingiram um nível de iluminação social que os libertou desses grandes postulados.

Nenhum dos dois se moveu por um longo tempo. Eram incapazes de urinar.

– Eu consigo. É só ignorar a presença dele.

Esse primeiro pensamento tolo logo foi descartado. Um deles talvez tenha conseguido derramar algumas gotas sobre a cerâmica, o que só piorou sua vontade.

– É impossível. Preciso esperar esse cara ir embora para conseguir.

– Ele vai perceber que eu não estou conseguindo.

– Não vai, ninguém presta atenção no cara do lado.

– A qualquer momento ele vai.

– Eu podia desistir, não podia? Ir embora. Lavar as mãos e fingir que nada de errado está acontecendo. Todo mundo já pensou nisso.  Ele não vai notar, eu procuro outro banheiro.

– É claro que ele vai notar. Depois de todo esse tempo sem fazer nada, ele deve estar prestando atenção. Que tipo de idiota fica na frente do mictório e não mija? Ele dele achar que eu sou um fracasso.

– Que situação ridícula. É só outro cara do meu lado. Eu consigo mijar. É só se concentrar. Lembrar daqueles artigos sobre meditação que li na internet semana passada. Focar nos azulejos.

– É impossível. Não vou conseguir. Preciso esperar ele sair.

Nenhum dos dois sabia, mas aquela era uma ocasião especialmente rara. Por mais que os banheiros de dois mictórios sejam em tal nível terríveis, na maioria das vezes dois homens entram um depois do outro, e o segundo, percebendo intuitivamente o problema que está se metendo, lava as mãos e procura outro banheiro.

Os dois entraram exatamente ao mesmo tempo. Não tiveram escolha.

Poucos seres humanos já viveram uma batalha de emoções e vontades quanto os dois homens. O orgulho gritava na mente, mantendo-os no lugar, apoiado pela vergonha. A dor puxava-os para fora, apoiado pelo senso de ridículo, o bom senso e a lógica. Os três últimos, é claro, não tinham chance real. Nunca foram as forças motivadoras da humanidade, diferentes dos primeiros. A preguiça estava cansada demais para entrar na batalha.

Talvez eles saíssem vivos dali. Depois de algumas horas (dias?) a iluminação social viria, e ambos urinariam ao mesmo tempo, jogando sua humanidade tola pelo ralo e levantando-se homens superiores. Apertariam as mãos (depois de lavadas), reconhecendo o companheirismo e importância um do outro naquela jornada de autodescoberta e sabedoria, e sairiam para espalhar a palavra aos seres humanos ainda presos na ignorância.

Se fosse assim, essa possibilidade realmente verdadeira, os banheiros de dois mictórios seriam uma coisa boa, até. Terríveis por criar tanto sofrimento aos homens, mas bons no sentido de que o sofrimento tinha um propósito, era uma jornada árdua até a grande recompensa do conhecimento. Mas, pelo histórico, isso era difícil de acontecer.

– Meu Deus. Eu vou morrer aqui.

A verdade veio aos dois quase ao mesmo tempo, ambos imóveis em frente ao mictório, o membro nas mãos, e nenhum dos dois esboçou reação nenhuma. Talvez uma lágrima tenha relutado em cair, escorregar pela face e bater nas mãos ocupadas deles, mas podiam usar a desculpa do ar seco, do tempo exagerado com os olhos abertos.

Dali era só questão de tempo. Primeiro a bexiga iria estourar, espalhando uréia e ácidos no corpo. Depois a fome ia cair sobre eles, impossível de saciar. Por fim, não seria o corpo a falhar primeiro; a mente, exausta com aquele nível de estresse, desistiria da vida, e os dois seriam levados por um tranquilo aneurisma espontâneo.

Era uma situação sem saída. A segunda regra os impedia de procurar por soluções ao entorno, a terceira de gritar por ajuda. Insolúvel como óleo na água. Talvez fosse hora de começar a fazer paz com a situação, conformar-se. Fora uma vida boa, cheia de alegrias e tristezas, de trabalho, pessoas, amores, decepções… Podia ser um fim trágico, um acidente de percurso sem muito motivo, mas não era isso que importava no final, era? A jornada é o que importa. Reviveram as próprias vidas, lembrando-se de todos os banheiros que viram, de todas as vezes que sem pensar seguiram as três regras, nunca imaginando que uma situação dessas podia acarretar na última consequência. A sociedade dos homens realmente vive em seu ápice, mas não é capaz de controlar as forças mais intesas das estruturas mentais criadas por milênos, soldadas entre os neurônios de cada homem com a força de…

– Ô! Vocês já terminaram aí?

Os dois homens se viraram por reflexo. A mulher da limpeza estava na porta.

Urinaram, lavaram as mãos e foram embora.


Um dos últimos textos curtos que escrevi, originalmente tinha o título menos chamativo de “inevitável”. Surgido bem onde você tá imaginando mesmo, mas num lugar que, para a minha sorte (ou azar?) tinha mais de dois mictórios.

E não se preocupe, eu lavei as mãos antes de escrever.

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Estacionamento http://oucoisaparecida.com.br/estacionamento/ http://oucoisaparecida.com.br/estacionamento/#respond Fri, 16 Jun 2017 13:25:53 +0000 http://oucoisaparecida.com.br/?p=58 leia mais]]>

E quando deu conta de si estava num estacionamento. O sol de meio dia batia forte em seus ombros cansados. O asfalto quente queimava abaixo da sola de seus sapatos.
Não entendeu o que estava acontecendo. Não sabia onde estava.

Olhou para os lados. Carros.

Olhou para a frente. Filas e filas de carros estacionados, se estendendo até o horizonte.

Virou-se brevemente, e viu que para trás havia uma visão semelhante. Tentou andar para o lado, atravessando uma fileira daqueles veículos, mas somente achou outra fileira deles e outra rua, indo até onde a vista alcançava nos dois lados. Fez isso até ter certeza de que era uma sucessão de ruas paralelas, com aquelas máquinas estacionados nos dois lados. Haviam marcações no chão, algumas placas aqui e acolá, e mais nada.

Verificou os bolsos da calça comprida. Carteira num bolso, chaves no outro. Chaves de algum carro. Um bilhete. Não havia hora nem data nele, somente um número e as palavras “BILHETE DE ESTACIONAMENTO” em letras garrafais e nada amigáveis.

Não havia som. Gritou, e não houve resposta. Subiu num dos carros, para ter uma visão melhor do lugar.

Um mar de veículos em todas as direções. Carros, carros. Uma quantidade incompreensível de carros.

Andou. Não importava muito para onde. Aquelas ruas deveriam levar a algum lugar.

#

Na primeira vez que escureceu dormiu no chão. Escondeu-se entre dois carros (como se houvesse algum perigo), e caiu no sono. A única fonte de luz que havia durante noite era a lua. A paisagem nunca mudava. Quando sentiu fome, ignorou. Quando sentiu sede, também ignorou. Quando não conseguiu mais ignorar, arrombou um carro. Quebrou o vidro, e lá dentro achou uma garrafa d’água. Não houve nenhum som, nenhuma reclamação, nada. Arrombou mais alguns carros da mesma maneira até arranjar alguma comida. Na noite desse dia, quebrou a janela de um carro grande e dormiu no banco do mesmo. Acordou com um susto, porém logo se lembrou de onde estava. Daquele lugar opressivo e bizarro, que não entendia. A dimensão do estacionamento.

Passava os dias caminhando. O único som que ouvia era o de seus próprios passos, e se sua respiração leve. A solidão era… Atroz, cruel, repugnante. Não pensava muito. Não sabia como chegara ali, nem onde estava, nem qual era o motivo por trás daquilo tudo. Não tinha certeza de como saber, então simplesmente continuava caminhando.

Quebrava os vidros de carros procurando por comida, água, e qualquer coisa útil. Achava uma quantidade surpreendente de coisas esquisitas que as pessoas carregavam nos seus veículos, e depois que arranjou uma mochila começou a carregar algumas delas. Isso distraía, tirava sua mente dali. Se começasse a refletir, concluiu, perderia a sanidade.

Um dia o vidro quebrado provocou o apitar do alarme. Tentou por muito tempo desligá-lo, mas foi incapaz. Somente se afastou. No silêncio, ignorar qualquer som era impossível. Teve que andar alguns dias até parar de ouví-lo. Essa cena se tornou comum nas semanas que se passaram, e com o tempo soube diferenciar quais veículos tinham alarmes. Perdeu muitas noites de sono por causa do barulho intermitente que eles causavam na distância.

#

Arranjou um caderno, e começou a escrever um pequeno diário. Percebeu que não sabia quanto tempo havia se passado desde o começo. Os dias foram e seriam todos iguais. Houve um começo? Não foi sempre assim?

Percebeu, em certo ponto, que não se lembrava como eram as coisas fora dali. Estava fazendo um esforço imenso para não enlouquecer. Vivia num modo ausente, se esquecendo constantemente da própria existência. Escrevia no caderno, usando a luz interna dos veículos que arrombava, e depois de um tempo sentiu que suas escritas estavam começando a perder a coerência. Parou por um instante, num dia qualquer, e percebeu que havia escrito a palavra “roda” vinte e sete
vezes seguidas, em diagonal, por cima de uma página que já tinha um texto nela.

Enlouqueceu.

Correu, gritou, ligou o alarme de todos os carros que conseguiu, empurrou alguns deles e os fez bater, tirou os pneus de um e os empurrou para o horizonte… Explodiu um carro, jogando um fósforo que achara no tanque de combustível. A explosão foi tão violenta que causou outras em sequência, criou chamas altas.

Acordou no meio da estrada, ferimentos leves (por pura sorte), no total caos solitário que causara. Os alarmes apitavam loucamente, o fogo se erguia alto, as peças de carros quebrados se espalhavam pelo chão… Se surpreendeu com a enorme imperturbabilidade de tudo aquilo, mesmo com aquela barulheira infernal.

Então se afastou. Se afastou o máximo que pode, e pensou um pouco na coisa toda. Passaram-se vários dias até que finalmente se livrou dos sons e do fogo, e estava num lugar exatamente igual ao começo. Carros em ambos os lados, silêncio interminável e morto. Decidiu fazer alguma coisa diferente. Aquilo tudo não estava levando a lugar algum. Aquele não pensar.

Estudou os carros, desmontou vários. Entendeu como desligar o alarme depois de ativado, como abrir a porta de certos modelos sem quebrar os vidros… E depois de algum tempo aprendeu como ligar o motor sem as chaves.

Arranjou uma mangueira, estocou comida e outras coisas úteis, abriu um carro tipo esportivo e pela primeira vez no que pareceram meses dirigiu. Demorou para relembrar como funcionava a embreagem, e como trocar de marcha de forma efetiva, mas depois de algumas horas estava de volta à forma original.

Dirigiu por inúmeros dias. Quando anoitecia parava o carro, procurava por comida e água, enchia o tanque usando a mangueira e dormia. Dirigir deu um novo aspecto àquilo tudo. Alcançava velocidades cada vez maiores na reta, e sempre que via um veículo melhor trocava. Sentia o vento no rosto e a adrenalina. Por muitos dias, isso foi o suficiente.

#

Estava num espaço aberto. A diferença foi tanta e tão abrupta que freou o carro, em altíssima velocidade, e quase capotou o mesmo. Saiu do veículo, e olhou em volta.

Atrás de si, a uma distância pequena, estavam os carros do estacionamento. Eles simplesmente paravam, em certo momento, num limite reto. Havia uma infinidade daquelas máquinas malditas até um ponto, e além desse não havia nada. Olhando para os lados via a linha de veículos se estendendo até o horizonte. Não parecia haver nada para a frente. Nada senão o asfalto.

Continuou.

Seguiu por algumas horas, até que os carros desapareceram no horizonte atrás de si. Anoiteceu, mas decidiu continuar. Dirigiu a madrugada inteira, e não viu nada. Na manhã do dia seguinte percebeu que estava num espaço completamente aberto e vazio, para todos os lados.

#

Percebeu que não sentia mais fome ou sede. Percebeu que não havia mais noite, e que, apesar de estar claro, não havia mais sol. A gasolina do carro, segundo o mostrador, acabara, mas o veículo continuava cortando aquele vazio.

Somente dirigiu. Por dias, meses, quem sabe anos. Já não percebia a existência do próprio corpo. Era um com o carro, mas sua mente nem mesmo estava ali.

Pensava sobre coisas que entendia plenamente, mas não sabia definir. Já não se lembrava de como era a vida fora daquilo tudo, das pessoas e dos problemas… Do universo como um todo. Por um instante compreendeu a verdade por trás de muito do que há, e atingiu um estado que transcendia a felicidade ou a tristeza.

Já não tinha consciência de si, nem do carro, nem a de coisa alguma. Afinal, praticamente não havia coisa alguma. Se tornou puro pensamento, e dirigir tornou-se tão natural e automático que foi capaz de esquecer-se completamente do que estava fazendo. Saiu de si mesmo, deixou de ser.

E então houve um ponto na distância.

Parar o veículo foi mais difícil e estranho do que imaginava que seria. Passou vários segundos encarando o ponto na distância, sem entender o que era aquilo, tudo aquilo. Aos poucos lembrou-se de que estava vivendo, aparentemente. Teve que relembrar como se tirava o pé do acelerador, como se freava, como se abria a porta, como se andava. Teve que readquirir a consciência sobre si mesmo, e tão logo que conseguiu não conseguia lembrar do que estava pensando em. Aquela compreensão grande que houve, no tempo em que dirigia, sumiu. Aproximou-se do carro estranho que havia no meio do nada.

Não era estranho. Lentamente lembrou-se de todos os inúmeros modelos de carro que vira no passado, no estacionamento, e esse era um deles, mas… Havia algo nele de diferente, de especial. Fitou o veículo por horas, até finalmente perceber o que era. Era um conhecimento de tempos imemoriais, antes do tempo em que dirigira, antes do tempo em que vagara pelo estacionamento.

Caminhou até o seu carro e colocou a chave na fechadura da porta. Destrancou.

#

Um carro passou por trás de si. Olhou para trás, num susto, e viu que o veículo passara a centímetros de seu corpo imóvel.

No que estava pensando mesmo? Não conseguia se lembrar. Mas teve aquela sensação que era algo longo, importante, algo assim. Onde estava? Ah, é claro, no estacionamento. Olhou para a frente e viu a saída. Olhou para trás e viu a cerca de metal que era o limite do lugar. Estranho, não havia nenhum carro em volta do seu.

Entrou em seu carro, e deu a partida. O ronco do motor o despertou mais ainda daquele estado um tanto ausente. Tirou do bolso o bilhete do estacionamento e dinheiro trocado para pagar. Não se lembrava direito do curto percurso que fizera da entrada do estacionamento até seu carro. No que estivera pensando naqueles míseros minutos? Bom, não deveria ser nada de muito importante, já que não se lembrava de nenhum detalhe.

Engatou a ré e foi embora.


Nossa, esse texto é velho. Realmente velho, antes de eu levar essa coisa de escrever mais a sério. Na época que escrever era ainda só um impulso pouco direcionado, uma ânsia sem propósito claro.

Eu ainda gosto dele, muito pelo que representa pra mim, um dos primeiros textos que escrevi sem ninguém me pedir, e que mostrei por aí. Achei que era um bom ponto de início pra este site novo. Um ponto de início para a minha escrita.

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